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Roberto Acioli de Oliveira

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24 de abr. de 2011

Religião e Cinema na França




Quem foi
que disse
que o fundamentalismo
católico não fala
francês?



 
No Começo Era o Fim

Em geral, ressaltou Yannick Dehée, durante a era do cinema mudo os filmes que retratavam personagens ou episódios bíblicos eram “respeitáveis”. Vale dizer, não questionavam aquilo que a Igreja Católica afirmava como a Verdade. Basta pensar em filmes norte-americanos como Ben Hur (direção Fred Niblo, 1925), Os Dez Mandamentos (The Ten Comandments, direção Cecil B. de Mille, 1923) e, na França, Golgotha (direção Julien Duvivier, 1935). Contudo, para desespero da Igreja, ao logo do tempo surgiram exemplos do que ela considerava blasfêmia. Em 1936, a encíclica Vigilanti Cura, do Papa Pio XI, deplorou “os tristes progressos da arte e da indústria cinematográficas na divulgação do pecado e do vício”. Na França, durante a ocupação nazista, o governo colaboracionista de Vichy colocou em prática o programa de Pio XI e interditou perto de 200 filmes através de um Cartel de Ação Moral. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Igreja francesa passa a exercer uma verdadeira censura sobre o conjunto do cinema francês (1).



Os cineastas franceses
não podem reclamar da sorte
,
pois poderiam até mesmo ter sido guilhotinados
...



Em 1946, fundou-se a Central Católica do Cinema (CCC), que examinava cada filme do circuito comercial e os classificava como: “filmes para todos (3)”, “para famílias (3b)”, “para adultos (4)”, “para adultos informados (4ª)”, “desaconselhável (4b)”, “ para banir (5)”. Os julgamentos eram amplamente divulgados na imprensa, em particular pela Radio Cinéma (futura Télérama). No caso do item número 5, os produtores de um filme eram livres para negociar os cortes necessários para liberar a obra. Dentre aqueles que a CCC desaconselhou na década de 50 estavam O Corvo (Le Corbeau, Henri-Georges Clouzot, 1943), O Vermelho e o Negro (Le Rouge et le Noir, direção Claude Autant-Lara, 1954), La Ronde (direção Max Ophüls, 1950), Le Blé en Herbe (direção Autant-Lara, 1954) e As Diabólicas (Les Diaboliques, direção Clouzot, 1955). Em 1961, a CCC se transforma no Ofício Católico para o Cinema, e amolece os julgamentos para: “filmes para todos (T)”, “para adultos e adolescentes (AO)”, “para adultos (A)” e “contestáveis (C)”. Nos anos 70 o Ofício perde pouco a pouco sua influência.

Jacques Rivette e Diderot



Ao que parece,
a  Revolu
ção   Francesa  não
foi suficiente para inaugurar
um Estado laico




O cineasta francês Rivette queria adaptar o romance de Denis Diderot (1713-1784), A Religiosa. A comunidade católica francesa se pôs em polvorosa mesmo antes que qualquer imagem tivesse sido filmada. Desde a apresentação do roteiro à “comissão de controle” em 1962, o filme já estava ameaçado de interdição total, o início das filmagens tendo sido autorizado apenas em 1964 sob “advertência”. O anúncio dessa decisão só faria aumentar as pressões de origem religiosa sobre Alain Peyrefitte, então Ministro da Informação, que cedeu. Em sua maioria, a imprensa foi contra a interdição de A Religiosa. Os religiosos diziam que a obra possuía um tom blasfematório que os desonrava. Yvon Bourges, o ministro seguinte, acaba interditando o filme em 1966. Seria preciso esperar até julho de 1967 para que A Religiosa passasse novamente pelas mãos da comissão e pudesse chegar finalmente aos cinemas. O mais curioso, é que todo esse barulho aconteceu em função de um filme cuja fonte é um livro existente na França desde 1796 (tendo sido publicada em partes a partir de 1760)! (2) (todas as imagens, A Religiosa)


Muito antes
dos   escândalos   de
p
edofilia na Igreja Católica,
A Religiosa
atacou os

abusos da religião




Em 1975, o Conselho de Estado confirmou a irregularidade da interdição feita pelo Ministro e reconhece enquanto tal a liberdade de expressão cinematográfica. André Malraux, então Ministro da Cultura, que em outra época já havia salvado muitos filmes das mãos da censura (como Uma Mulher Casada, de Jean-Luc Godard), não se mexeu: contentou-se em mandar A Religiosa para representar a França no Festival de Cannes. Godard escrever-lhe uma carta onde colocava claramente todo o seu descontentamento com a subserviência de Malraux e chamava a censura de “essa Gestapo do espírito”. Por outro lado, Jeanne Favret-Saada acredita que o “caso A Religiosa” não resultou de uma manobra da Igreja Católica ou do Estado gaulista (3) para censurar o filme. A violência sofrida por Rivette resultaria de uma reação epidérmica de tradicionalistas chocados com o Concílio Vaticano II (que tratou das relações entre a Igreja Católica e o mundo moderno) e de gaulistas oportunistas procurando ganhar votos no eleitorado católico.

Godard e a Censura



Se o governo
civil franc
ês foi capaz disso,
imagine  o  governo militar

brasileiro



Entretanto, para Colin MacCabe, o presidente Charles De Gaulle já havia demonstrado sua determinação de aprofundar o controle do Estado sobre a decisão de quais filmes o público Francês poderia assistir (4). A partir de 1960, as decisões da censura se tornaram atribuição ministerial. Jean-Luc Godard sentiu o peso dessa mudança muitas vezes. O mais ilustre exemplo foi O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1960), um filme que questionava a presença militar francesa na Argélia e só chegou aos cinemas três anos após sua conclusão. Outro caso foi o corte de cenas do presidente norte-americano Eisenhower e de Gaulle em Acossado (A Bout de Souffle, 1960), ou ainda Uma Mulher Casada (Une Femme Mariée: Suite des Fragments d’un Film Tourné en 1964, 1964), obrigado a mudar de título. Godard se tornou particularmente suscetível à opressão nos encontros com o censor. Talvez por esse motivo, sugere MacCabe, no começo dos filmes do cineasta o número do visa que aparece nos créditos (e que afirma que o ministro permitiu o lançamento daquele filme) seja tão maior do que as letras do restante das informações.


Com Je Vous Salue Marie, Godard se tornaria alvo dos fundamentalistas   católicos
e  dos   aproveitadores   que

puxam o saco da Igreja em
busca de votos ou platéia



O governo voltaria à carga em 1968 com a demissão de Henri Langlois da Cinemateca de Paris. Há quem diga que essa atitude do governo foi um importante tiro no próprio pé. No dia seguinte, cineastas franceses e de todo o mundo bombardearam a Cinemateca com telegramas proibindo a utilização de seus filmes: Abel Gance, Alain, Resnais, Georges Franju, Chris Marker, Alexandre Astruc, Robert Bresson, Richard Lester, Lindsay Anderson, Carl Theodor Dreyer, Akira Kurosawa, Nagisa Oshima, Jerry Lewis, Charles Chaplin, Roberto Rossellini, Fritz Lang, entre outros. Um boicote organização pelo Cahiers du Cinéma. No primeiro de uma série de ferozes explosões a respeito de A Religiosa, Godard publicou no jornal Le Monde em abril de 1966 um agradecimento ao Ministro do Interior que baniu o filme, porque agora ele podia ver a verdadeira cara da intolerância. Em sua carta aberta a Malraux, publicada dois dias depois no Le Novel Observateur, ele foi mais extremo. De fato, a atitude de Malraux é no mínimo contraditória, ao permitir que a França fosse representada em Cannes por um filme que os franceses foram proibidos de assistir.

Leia também:

A Religião no Cinema de Carl Dreyer
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Notas:

1. DEHÉE, Yannick. Mythologies Politiques du Cinéma Français. Des Anées 1960 Aux Anées 2000. Paris: Puf, 2000. Pp. 72-3.
2. Idem, pp. 74-6.
3. Gaulismo é uma postura ideológica baseada nas idéias de Charles de Gaulle, então presidente da França.
4. MacCABE, Colin. Godard. A Portrait of the Artist at 70. London: Bloomsbury Publishing, 2004. Pp. 201-2, 399n14. 


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