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Roberto Acioli de Oliveira

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30 de jul. de 2008

As Mulheres de Ingmar Bergman (II)


“Quanto mais eu vejo o interior das pessoas,
menos às enxergo” (Fritz Lang)*

Dizer a Verdade Me Faria Feliz?

Esse problema de socialização que é não ter aprendido a ser hipócrita, dissimulado(a) e mentiroso(a)... O velho problema da Verdade. Você acha que se for honesta(o) vai ganhar algum prêmio? Acha que só porque é mulher você é mais honesta? Se você fosse mesmo honesta(o) o que você diria, só a verdade? Quando a verdade nos deixa sem palavras, por que procurá-las? Só porque os outros esperam que você diga algo, mesmo quando não há nada a dizer? Quando você conta uma mentira, e admitiu haver mentido, você está dizendo a verdade... a respeito da mentira. Mas se você mente e não admite, está dizendo uma mentira... sobre a mentira. Tudo isso quer dizer apenas uma coisa, mentira e verdade possuem naturezas dúplices e intercambiáveis. Ou não? Se toda mentira pode também ser uma verdade, por que o esforço para mentir ou dizer a verdade? Eu existo? Você existe?

Frequentemente, os sentimentos que nutrimos em relação a alguém parecem mais verdadeiros que sua presença. O sentimento de posse física presente no ciúme seria sempre um pálido substituto daquele outro sentimento que procura desesperadamente acreditar que alguma coisa pode ser verdade – mesmo que seja uma mentira qualquer e seja contra nós mesmos. Até que ponto um sentimento que temos por alguém deveria ser mais verdadeiro para nós que a presença física desse alguém? Podemos ter tanta certeza que os outros existem, tanto quanto temos certeza da existência do sentimento que temos por essas pessoas? Resta um rosto...

A Muda e a Falastrona na Ilha Deserta

Algumas dessas questões são visíveis em Persona (1966). Duas mulheres, uma atriz que resolveu se calar e sua enfermeira tagarela, partem para uma ilha. Falando sem parar, Alma, a enfermeira, expõe seus momentos (e sentimentos) mais íntimos. Elisabet, a atriz, escuta, se limitando a responder com um rosto sério ou um leve sorriso. Sempre na companhia de Alma, são três os momentos no filme em que escutamos Elisabet: quando ela diz a palavra “nada”; quando ela diz a frase “não faça isso”; e quando ela aceita cantarolar uma melodia num momento de paz. Alma sente afeto por Elisabet, sentimento que muda completamente quando ela descobre que a atriz a analisa como se ela fosse uma experiência interessante. (ao lado, Alma)


Por outro lado, o mutismo de Elisabet já estava levando Alma a perceber como ela não prestava atenção em seus próprios sentimentos, abrindo em Alma uma ferida e uma tendência a se identificar com Elisabet noutro nível, mais profundo. Essa identificação acaba por levar Alma a não ter mais certeza de ser ela mesma ou ser Elisabet. Desta forma, a partir do momento de identificação, Alma mergulha numa rejeição em relação à Elisabet - só que a atriz já é parte da enfermeira. Portanto Alma começa a rejeitar alguém que ela mesma já havia se tornado. No final, Alma já não sabe quem ela é – em certo momento diz em voz alta tentando acreditar em si mesma: “eu não sou Elisabet Vogler”. (ao lado, Elisabet Vogler)


Elisabet Vogler, uma mulher que vive da palavra, resolve se calar porque não suporta mais a constatação de que a vida em sociedade impõe a mentira como moeda de troca. Da mentira para a hipocrisia é só um pulo. Se a palavra nos afasta da verdade, então devemos escolher de que lado nos escondermos. Elisabet não acredita que verdade e mentira sejam intercambiáveis, alguma coisa tem de ser verdade, alguma coisa tem de ser mentira. Essa situação leva Elisabet a mergulhar num mutismo voluntário no qual sua médica não encontra elementos histéricos, nem elementos suicidas.

A médica diz a Elisabet que compreende sua atitude de recusa em relação a uma sociedade que nos força a contradizer tudo que ela mesma ensina como o certo a fazer (ao lado). Oferece sua casa de campo numa ilha para que a atriz descanse. Alma irá acompanhá-la. A primeira impressão da enfermeira é de que talvez ela não tenha capacidade interior para compreender o problema de Elisabet. Aceita a tarefa mesmo assim e parte para o isolamento da ilha com o desafio de ajudar aquela atriz. As expectativas de Alma se concretizam e Elisabet se revela um elemento chave como ponto de virada em sua vida.

Um Buraco No Lugar do Rosto

Elisabet prefere se calar a dizer mentiras ou dissimular seus sentimentos. O problema é que mentir (inclusive, e talvez principalmente, para si mesmo) é considerado comportamento normal em nossa sociedade. Alma fala pelos cotovelos, mas não mente sobre seus sentimentos e os eventos de sua vida que os moldaram. Ainda assim, a capacidade de análise dos acontecimentos de sua vida revela-se muito limitada. Foi preciso que ela tomasse uma atitude condenável (violar uma carta de Elisabet) para que, ao descobrir a atitude da atriz em relação a ela (Elisabet gostava de analisar os comportamentos e reações da enfermeira em relação aos acontecimentos de sua vida), começasse finalmente a tomar a si mesma como objeto de estudo. A partir daí Alma muda radicalmente sua atitude em relação à Elisabet, mas em relação a si mesma ela ainda não sabe para onde ir – ela nem sabe mais quem ela é.


Bergman representa esse momento mostrando que o próprio cinema se faz em função da mesma fragilidade. De repente, a imagem de Alma se parte, mas não apenas ela, o próprio filme. Em seguida surge um buraco em seu rosto, mas não é apenas a representação de seu vazio identitário, é a própria película do filme que começa a queimar-se (acima, à esquerda). Quase simultaneamente, Bergman nos mostra pelo menos três coisas: a dubiedade dos valores sociais, as ilusões nas quais nos agarramos e o caráter ilusório dos próprios meios (por mais materiais que sejam) que utilizamos (o cinema, no caso) para enxergar o mundo e a nós mesmos.

É como se um filme que tenha como tema, ou simplesmente mostre, a fragilidade e a precariedade das relações sociais ou íntimas, estivesse também mostrando seus próprios limites – o filme não mostra a verdade, ele indica uma porta nessa direção. Tanto o mundo da imagem cinematográfica, quanto o mundo dos sentimentos humanos padecem de uma fragilidade extrema quando tentam se materializar. Há como superar tal fragilidade e precariedade ou ela é intrínseca a tudo isso? Como se vive com a fragilidade e a precariedade sem destruí-la? Bem, existe sempre algum objeto que manuseamos com extremo cuidado para não quebrar, e também reconhecemos que sua beleza está em sua fragilidade e precariedade.


Por que não pode ser assim com a vida também? Por que a constatação da fragilidade e da precariedade de nossas vidas e nossas relações é vivida como um descontrole ou um problema a ser resolvido? É como se a vida tivesse de ser blindada a qualquer custo para não se quebrar. Em princípio, uma boa intenção! Mas no final essa estratégia pode tornar inviável vivermos a vida. Usar uma xícara cara e frágil pode quebrá-la. Mas, se ela não for usada perde sua razão de existência. A vida é frágil e precária, mas se não for posta em risco não é vida.

Aparentemente Elisabet não quer arriscar mais. Parece ter perdido a fé de que no próximo contato com outras pessoas poderá encontrar alguém que não minta e para quem também não precisará mentir ou dissimular seus sentimentos – Alma talvez represente essa possível pessoa “de verdade”. Alma tinha essa fé, mas não parecia ter consciência de si mesma – faltava-lhe uma vivência introspectiva. Fé que começa a perder, principalmente após ler a tal carta em que Elisabet falava sobre ela. As duas acabam se misturando. Ou será que na verdade o que acontece é a ultrapassagem do ponto de individuação? Mas não é a mesma coisa?

O Rosto Apagado

Numa mistura, alguma coisa desaparece naquilo que ela faz surgir – qualquer um(a) que entende um pouco de preparar comida sabe disso. Gilles Deleuze sugeriu que, na verdade, os rostos de Elisabet e Alma não se confundem na colagem que fez Bergman. Em sua opinião o primeiro plano, o close, impelirá o rosto até uma região onde o princípio de individuação deixa de reinar. “[Os rostos] não se confundem porque se parecem, mas porque perderam a socialização e a comunicação” (1).

“Habitualmente são reconhecidas no rosto três funções: ele é individuante (ele distingue ou caracteriza cada um), é socializante (manifesta um papel social) e é relacional ou comunicante (assegura não só a comunicação entre duas pessoas, mas também numa mesma pessoa o acordo interior entre seu caráter e seu papel). Pois bem, o rosto que efetivamente apresenta estes aspectos, tanto no cinema como fora dele, perde os três quando se trata do primeiro plano. Bergman é, sem dúvida, o autor que mais insistiu sobre o elo fundamental que une o cinema, o rosto e o primeiro plano”. (2)

Ultrapassando a individuação, não é a mistura que sobrevêm, mas o vazio. No caso, o vazio seria aquilo a ser alcançado quando se ultrapassa as máscaras sociais. Portanto, na visão de Deleuze, aquela imagem onde Bergman junta uma metade do rosto de cada uma das personagens, supõe que o cineasta quis mostrar o instante em que as duas ultrapassaram finalmente o limiar das máscaras ou da individuação. Já um pouco antes, na sequência em que Bergman mostra o filme travando e se queimando justamente sobre o rosto de Alma, é esse vazio que aparece no buraco que toma o lugar das feições da enfermeira.

É o que Deleuze chamou de cinema do medo. O close empurra o rosto para o vazio: “o primeiro plano-rosto é ao mesmo tempo a face e seu apagar”. O rosto se extingue na ultrapassagem de sua máscara, pois a visão do vazio (ou ausência) enche o ar de medo: “O medo do rosto diante de seu nada” (3). Assim sendo, na profusão de closes dos filmes de Bergman, além do fascínio em relação à face, o que teríamos de fato é um niilismo do rosto. Ele chega a isso justamente através do close, cuja função seria impelir esse rosto para fora do mundo onde é a sociedade (com regras sociais) que dá as cartas. (ao lado, imagens do prólogo de Persona. No alto, Elisabet Vogler, abaixo, vemos Alma)

A questão é como se afastar o suficiente para não se confundir com o outro. O medo é um limite, um limiar, mas o desejo aponta para a vida (4). A vida é o aberto, onde há espaço para o afastamento necessário entre os rostos, para que não haja a confusão entre eles (que os leva ao apagamento) e tampouco dependência de máscaras. (**)

Notas:

(*) Cineasta alemão que dirigiu Metrópolis (1927), referindo-se à cegueira que o forçou a abandonar a profissão.
(**) As Mulheres de Ingmar Bergman (I) encontra-se no arquivo de maio de 2008. As Mulheres de Ingmar Bergman (III) encontra-se no arquivo de maio de 2009.

1. DELEUZE, Gilles. Cinema I: A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985. P. 129.
2. Idem. P. 128.
3. Ibidem, pp.129-130.
4. Ibidem, p. 131. Deleuze relaciona o afeto simples do medo, o apagar dos rostos, o desejo e o próprio primeiro plano-rosto ao conceito de imagem-afecção. Não abordei o ponto porque uma descrição detalhada do conceito extrapolaria os objetivos deste artigo. É minha a conclusão de que a possibilidade do afastamento permite, especificamente, nos livrarmos da dependência em relação às máscaras. Deleuze fala do afastamento possibilitando escaparmos da confusão entre os rostos e seu apagamento, mas não é explícito em relação à neutralização, ou nem mesmo à necessidade, de neutralizar a máscara.

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