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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

11 de mar. de 2008

O Rosto no Cinema (II): Prisão do Olhar?






“Uma imagem
vale mais que
mil palavras”


Provérbio
chinês




A
Fisiognomonia

A velha questão do ser e do parecer já deu e continua dando o que falar. A tentativa de captar a natureza interna de alguém, num grau que permita traçar constantes científicas, chamou-se Fisiognomomia (physis, “natureza”, gnomon, “que conhece”: um saber da fisionomia). Winfried Nöth nos mostra como a fisiognomonia se encaixa no que foi chamado Doutrina das Assinaturas. Na Renascença, Paracelsus (1493-1541), elaborou um sistema de códigos para uma interpretação dos signos naturais. O homem, Deus, um princípio interior chamado archaeus, estrelas e planetas, eram os quatro emitentes desses signos…

“Os signos naturais, que tais emitentes deixaram como traços indexicais no mundo, eram chamados assinaturas e podiam ser descobertos em várias zonas do mundo. Na face humana, os signos eram codificados pela fisiognomonia. As regras para descobrir o sentido das assinaturas nas linhas do corpo humano, assim como nas linhas visíveis da superfície das plantas, foram ensinadas na quiromancia; os segredos semióticos das assinaturas da terra, do fogo, da água e dos astros foram descobertos pelos códigos da geomancia, da piromancia, hidromancia e da astrologia, respectivamente. Conforme a Doutrina das Assinaturas, os signos do mundo mantêm entre si uma relação de iconicidade porque existem semelhanças, analogias, afinidades ou correspondências escondidas que os ligam numa relação pansemiótica”. (1)

O Cinema Mudo


Seja como for, o cinema mudo soube muito bem explorar os elementos expressivos do rosto em particular. Em A Greve (Stachka, direção Sergei Eisenstein, 1924), temos uma classificação fisiognomônica dos espiões que trabalham para o dono do capital. Seus apelidos seguem suas feições, Eisenstein chega a sobrepor na tela cada espião e o animal correspondente. Assim, “macaco”, “coruja”, “bulldog”, “raposa”...



Dentre os muitos filmes que poderiam ser citados, lembramos A Paixão de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne D’Arc, direção Carl Dreyer, 1928) (imagem acima, à esquerda) e o já citado A Greve. Em Que Viva México!(ao lado), filmado em 1931 no México por Eisenstein e sua equipe já no princípio do cinema falado, (2) o diretor faz um trabalho marcante em certos closes, também explorando magistralmente o universo das máscaras nos festejos da Virgem Santa de Guadalupe e do Dia dos Mortos.

Na passagem do cinema mudo para o falado, o famoso diretor alemão Fritz Lang resolveu certo problema operacional, em O Testamento do Dr. Mabuse (The Last Will of Dr. Mabuse, 1932) utiliza um estratagema que se encaixa muito bem em nossa discussão. Em seu livro sobre a voz no cinema, Michel Chion (3) nos lembra que o ator que desempenhava o papel do famigerado doutor, não falava francês, apenas alemão. Na época os filmes eram rodados em duas línguas. A solução foi separar a voz do corpo. Sempre que Mabuse falava em cena, sua voz vinha de uma cortina.

É como se Lang utilizasse o advento do som no cinema não para refundir partes separadas do corpo (rosto e voz), mas para pulverizá-las e fragmentá-las ainda mais. “Um corpo mudo, uma voz sem corpo: assim se divide, para melhor dominar, o terrível Mabuse” (4). Lang pôde dizer ao público: “Mabuse fala!” Assim como foi dito em outro lugar: “Garbo fala!”

Em seu artigo O Rosto de Garbo, (5) Roland Barthes sugere que em Rainha Cristina (Queen Christina, direção Rouben Mamoulian, 1933) (que não é um filme mudo) o rosto de Greta Garbo ostenta uma pintura que a transfigura em máscara. Um rosto que é visto mais pela superfície da cor que por suas linhas. Compara os olhos de Garbo com feridas inexpressivas, à moda da “fase farinhenta” de Carlitos, com olhos de vegetal e rosto de totem. Na opinião de Barthes, o rosto de Garbo era como a tentação da “máscara total” (aqui ele cita a máscara antiga), onde o tema é menos o segredo (as meias-máscaras italianas) que um arquétipo do rosto humano. É como se Garbo fosse além, seu rosto problematiza a máscara… (imagens da esquerda e direita)


“Porém, neste rosto deificado desenha-se algo mais agudo ainda do que uma máscara: uma espécie de relação voluntária, e portanto humana, entre a curva das narinas e a arcada das sobrancelhas, uma função rara, individual, entre duas zonas do rosto; a máscara não passa de uma adição de linhas, o rosto, esse, é antes de mais nada a consonância temática entre umas e outras. O rosto de Garbo representa o momento frágil em que o cinema está prestes a extrair uma beleza existencial de uma beleza essencial, em que o arquétipo está se infletindo em direção ao fascínio pelos rostos perecíveis, em que a clareza das essências carnais cederá o seu lugar a uma lírica da mulher”. (6)


O movimento expressionista no cinema mudo alemão da década de ’20 do século passado fez uso extensivo de elementos de maquiagem facial. O destaque dos protagonistas era quase sempre feito entre a máscara branca e as olheiras enormes. Cesare (ao lado), sonâmbulo e assassino em O Cabinete do Dr. Caligari (Das Kabinet des Dr. Caligari, direção de Robert Wiener, 1919), ostenta olheiras profundas. Também em Nosferatu, o vampiro da Noite (Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens, direção de F. W. Murnau, 1922), o vampiro ostenta enormes olheiras (imagem no início do artigo), o que é bem incomum nos vampiros subseqüentes que apareceram nas telas, de Peter Cushing à Tom Cruise – com a excessão de Klaus Kinski, no remake dirigido pelo diretor alemão Werner Herzog em 1979. No caso do Nosferatu de Murnau, a própria sombra do vampiro faz o papel de uma grande olheira.


Um rosto também vale mais que mil palavras? Ora! Se o rosto é uma imagem… Mas que imagem? Uma imagem não é necessariamente uma… “verdade”! Outro provérbio diz que “os olhos são a janela da alma”. De onde tiramos aquilo que vemos nos olhos uns dos outros? Dos outros ou de nós mesmos?

Talvez, diz o pessoal da literatura de auto-ajuda, precisemos de lugares-comuns, pois o imponderável traz incertezas! Entretanto, ao eliminarmos o elemento psicológico introspectivo, até que ponto poderíamos afirmar trazer mais certezas do que problemas a partir da tendência à interpretação das emoções visíveis nos rostos? Como uma sociedade que empurra os indivíduos para crises de identidade pode acreditar que suprir um intelecto alienado com imagens prontas e digeridas vai tranqüilizar as pessoas por apresentar um mundo de certezas?

Lugar privilegiado na construção tanto da identidade quanto da comunicação interpessoal, a falta de uma postura de estranhamento em relação aos traços do rosto não estaria fazendo dele uma prisão de estereótipos e clichês?

Notas:

Leia também:

O Rosto no Cinema (I), (III)
O Rosto que Ainda Procura Por Si

1. NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995. Pp. 39-40.
2. Este filme ficou inacabado. A reconstrução supostamente mais fiel foi de Grigory Alexandrov e Nikita Orlov em 1979.
3. CHION, Michel. La voix au cinema. Paris: Editions de l’ Etoile/Cahiers du cinéma, [1982]1993. Pp. 41-42.
4. Idem, p. 42.
5. BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução Rita Buongermino e Pedro de Souza. São Paulo: Difel, 7ª ed., 1987. Pp. 47-49.
6. Idem, p.48.


10 de mar. de 2008

As Personas de Ingmar Bergman



“O que me dava tanto pavor,
o enigmático, o Além, não existe.
Tudo é destemundo. Tudo existe
dentro de nós, tudo se passa
dentro de nós, nos infiltramos
uns nos outros e nos libertamos
uns dos outros. É tudo”

Ingmar Bergman
Imagens, p. 239.


A Morte joga xadrez com Antonius Block. Enquanto ele ganhar...



E nos libertamos uns dos outros… É tudo.

Bergman se incomoda com o fato de que alguns de seus filmes não traduzem o que acontece com ele. É como se o diretor visse seus filmes como uma espécie de diário filmado, a idéia de que seus filmes pudessem ser vistos (por ele) como ficção não parece passar por sua mente. A idéia de tomar seus filmes como obras de ficção, onde poderia fazer colagens entre fatos de sua vida e elementos ficcionais, parece até mesmo irritar o diretor – exemplo disso seria Através de Um Espelho (Sasom i en Spegel, 1961).

Bergman conta que em O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, 1957) se encontram muitas recordações de sua infância (1). Como seu pai era pastor, Bergman guardou na lembrança os interiores das igrejas que visitou. Retábulos, crucifixos, vitrais, murais, todos os temas cristãos podem ser encontrados aqui, o cavaleiro jogando xadrez com a Morte é um deles. Bergman admite que O Sétimo Selo seja um dos poucos filmes que dirigiu que acalenta seu coração. Até esse momento, o diretor ainda mantém uma relação com a religião, acreditando que algum diálogo é possível com esse universo – a relação amistosa entre o cavaleiro, com sua crença religiosa, e o escudeiro, com seu racionalismo adulto, é prova disso. Ele ainda acredita que existe alguma salvação for a deste mundo. A família também receber neste filme um voto de confiança.

Até seus vinte anos Bergman tinha muito medo da morte, um medo muito ligado a concepções religiosas. A idéia de que existisse um limiar a partir do qual perdemos todo o controle sobre nós, sempre o havia amedrontado - em Fanny e Alexander (Fanny och Alexander, 1982), o momento em que Alexander demonstra medo em se aproximar de seu pai moribundo. A criação da figura da Morte para O Sétimo Selo teria sido um primeiro passo contra esse horror da morte – que talvez culmine no comentário de Alexander, novamente em Fanny e Alexander: “Se há Deus, ele é um merda e queria chutar seu rabo”.

Acreditou que ao maquiar de branco o rosto da Morte, poderia trazer o universo dos palhaços. Para o personagem da Morte, Bergman criou uma síntese entre uma caveira e um palhaço (2). Ele conta que tinha dúvidas de que o público fosse identificar a Morte com aquele ator vestido de preto com o rosto maquiado de branco, mas tudo deu certo. O diretor afirma, “O Sétimo Selo é, definitivamente, a expressão de uma das últimas idéias e manifestações de fé que eu herdara de meu pai e que alimentara desde a infância. Quando fiz o filme, as orações eram realidades em minha vida. Rezar, para mim, era um ato absolutamente natural” (3). Foi a partir de Através de Um Espelho que essa fé deu lugar a uma forma mais fatalista de ver o mundo. A santidade está dentro de cada um de nós, santidade que está neste mundo e não fora dele. O deus-aranha de Karin não é um acaso. Este filme afirma a tese de que todo conceito divino é obra humana, e sempre é um conceito monstro. Um monstro com dois rostos, deus-aranha.

A incapacidade de colocar-se fora do alcance das pressões sociais que nos arrastam para longe de nós mesmos, e a conseqüente necessidade de viver protegido por trás de uma máscara, ainda que seja uma opção dilacerante. Eis aí o tema de O Rosto (Ansiktet, 1958), eis aí a transcrição para a tela de cinema dos sentimentos de Bergman na época. Bergman se transcreve no personagem Johan Spengel, ele é alguém que morre duas vezes e o primeiro a perceber as dissimulações do mágico Vogler. Spengel afirma que Vogler “é um charlatão que necessita esconder seu verdadeiro rosto” (4). Afirma também que nosso único movimento é em direção às trevas. Na época Bergman se sentia como uma prostituta em relação a sua função de direção do Teatro Municipal de Malmö, cuja demanda era apenas por dinheiro.

O tema é retomado em O Rito (Riten, 1969), onde as personas em que Bergman se divide são três. Sebastian Fischer é um sujeito irresponsável, Hans Wikelman é um homem organizado e Thea é condescendente e tem necessidade de agradar (5). Nessa altura, Bergman deixa o cargo de diretor do Teatro Municipal em estado de raiva, pois apesar de ter tirado o teatro do anonimato só recebeu críticas. Os três personagens estão indissoluvelmente ligados, e só a partir de uma tensão entre eles cada um pode fazer alguma coisa. Nas palavras de Bergman, “Isto foi uma tentativa honesta de me dissecar a mim mesmo, de revelar como, no fundo, eu funciono. De expor as forças que mantêm a máquina de meu eu em marcha” (6).

Bergman segue em sua genealogia de personagens de si mesmo. Thea tem três irmãs, que habitam outros de seus filmes: Karin, de Através de Um Espelho, que atravessa papéis de parede e conversa com um deus-aranha; Agnes, de Gritos e Sussurros (Viskiningar och Rop, 1973), que está bloqueada entre a vida e a morte (como Spengel, ela também morreu duas vezes); Aman/Manda, de O Rosto, cuja sexualidade varia sem cessar. Como primo de Bergman, entra aí Ismael, de Fanny e Alexander, um garoto que é mantido num quarto fechado. Segundo Bergman, durante sua estada no Teatro Municipal, somente Hans Winkelman esteve presente, ou ativo. Uma fala de Thea traduz o sentimento de Bergman. Ela acha que está vivendo por demais em função dos personagens que cria em sua mente, então vai a um médico queixar-se:

“(…) [Ele] afirmou que não é bom nos afastarmos da realidade, como eu fazia. Então perguntei se a realidade era a idéia que a maior parte das pessoas fazia da vida, e se havia possibilidade de existirem vários tipos de realidade, todas elas igualmente reais. A tudo isso o médico respondeu que o que se deveria fazer era viver da melhor maneira possível. Depois, quando lhe disse que eu de forma alguma era infeliz, ele encolheu os ombros e começou a escrever a receita”. (7)

Notas:

Leia também:

As Mulheres de Luis Buñuel
Luis Buñuel, Incurável Indiscreto

1. BERGMAN, Ingmar. Imagens. Tradução Alexandre Pastor. São Paulo: Martins Fontes, 1996. P. 229.
2. Idem, pp. 234 e 238.
3. Ibidem, p. 236.
4. Ibidem, p. 171.
5. Ibidem, p. 177.
6. Ibidem, p. 180.
7. Ibidem, p. 182.

9 de mar. de 2008

Refletir é Chato: Ingmar Bergman, o Clichê e a Arte


 
“Civilização da 
imagem? Na verdade
uma civilização do clichê”

Gilles Deleuze



Imagens de Bergman Para Ele Mesmo?

Nas imagens que nos oferta por força de sua profissão, Bergman mostra muitos elementos, temas e obsessões presentes em seu diálogo interno. Não é possível produzir uma tese sobre todo mundo que desejamos compreender. Até porque, traduzir Bergman, traduzir alguém, demanda uma postura ativa daquele que acredita que basta ler a tradução que alguém fez. Ajuda, mas não resolve. Nada substitui a experiência! Mesmo que nos abríssemos às imagens que Bergman nos oferece, temos que compará-las com nossas próprias imagens ou, finalmente, iniciar a busca por nossas próprias imagens, paisagens internas que deixamos de lado ou nunca buscamos. Não é por acaso que temos dificuldade com as imagens do prólogo de Persona.

Na cultura das imagens em que vivemos hoje em dia, nos sentimos paradoxalmente sem inspiração quando elas próprias não nos apresentam um significado rápido e pré-digerido. Na verdade, estranhamente, nessa cultura das imagens, mergulhamos nelas, entretanto não as enxergamos. Fugimos de seu lado potente, buscamos seu lado morno, inócuo. Como nós, elas podem ser potentes e autênticas ou mornas e irrelevantes. Para que serve o cinema afinal? Outro cineasta, o italiano Bernardo Bertolucci, nos dá uma dica: “O cinema me serve antes de mais nada para dar um estilo à minha vida, e depois até para não deixar que eu enlouqueça. Serve para interpretar uma realidade que me parece misteriosa e desordenada. Enfim, me serve para pôr um pouco de ordem nesta espécie de caos que sinto dentro de mim e fora de mim”. (1)

Estórias (e Histórias) Lineares Com Finais Felizes

“Quando Duas Mulheres Pecam” foi o título que escolheram para Persona (1966), filme dirigido por Ingmar Bergman, quando foi lançado no Brasil. Criou-se com isso a falsa impressão de uma união sexual entre as duas protagonistas. Não é que um filme com duas mulheres, que às vezes se tocam, não pudesse ter uma conotação sexual. A questão é que a temática do filme ultrapassa em muito esse detalhe. Trata-se do questionamento das máscaras que somos forçados a vestir na vida em sociedade.

Persona não segue uma trajetória linear e frequentemente não sabemos se os personagens estão acordados ou sonhando. Ao contrário de muitos de seus filmes, com Persona, Bergman acaba gerando confusão e desinteresse nas mentes daqueles mais preguiçosos e/ou que se sentem desconfortáveis com todo pensamento que não é linear. Tudo isso não os instiga! O patético título com que foi lançado no Brasil na época dá bem a dimensão do nível de incompreensão – além dos interesses financeiros dos distribuidores. Na verdade, o problema das abordagens de análise (não tanto das teorias, mas dos teóricos que as manipulam) está em que fomos e continuamos e ser adestrados para esperar informação e acreditar que isso é o suficiente.


Um filme como Persona chama atenção para o fato de que informação é apenas o primeiro degrau. Informação não é cultura e muito menos arte. O importante é a vivência daquele universo proposto pelo filme. Ao invés de esperarmos que as seqüências sejam auto-evidentes, que nos ofereçam as respostas como se enfia uma colher de mingau na boca de um bebê, devíamos procurar mergulhar naquele universo. A ausência dessa atitude se dá porque o ensino da arte é entendido mais como transmissão de informação do que como vivência – não é uma questão de saber sobre ele, mas de viver o universo artístico. E quando se fala em vivência, o que se pede é capacidade de introspecção. Como disse Teixeira Coelho, “quando arte e cultura estão presentes no ensino brasileiro, seja na escola primária seja na universidade, é frequentemente muito mais no caráter de informação do que no de vivência”. (2)

Você Não Está Só 
 
Entretanto, se com toda boa vontade do mundo você não consegue entender Persona, saiba que você está bem acompanhado. Liv Ullman, uma das atrizes principais do filme, admitiu que não estava entendendo nada. Sim, o arqui-outsider Jean-Luc Godard também disse que não compreendeu nada (3). No caso dele isso não quer dizer muito, já que outro arqui-outsider, Pier Paolo Pasolini, como ele também achou fraco o primeiro filme de François Truffaut (Os Incompreendidos, 1959).

Mas Pasolini achou Persona um filme esplêndido, quase completamente imaterial, um “mistério” e extremamente leve. Embora tenha afirmado também que nele, sem espírito crítico algum, Bergman inseriu em seu próprio universo estilístico formas que não lhe eram próprias. Formas difundidas pela cultura “especializada” da época. Apesar de o próprio Godard ter dito o que disse, Pasolini encontrou traços da montagem godardiana. Por outro lado, muitos dos filmes de Pasolini foram reduzidos a clichês sexuais pela sociedade da época - foi então, conta Pasolini, que resolveu fazer filmes mais “difíceis”, para que fosse mais difícil que sua mensagem caísse na cloaca comum dos filmes de entretenimento. Portanto, é curioso que censure Bergman por ter realizado um filme bem distante, em termos de forma, de muitos daqueles que fizeram sua fama nos anos anteriores.

Conclusão, podemos até ler aquilo que os supostos conhecedores (aqueles que escrevem sobre um assunto, mas não citam suas fontes) dizem, mas nada substitui nossa própria visão de mundo. Se você prefere os filmes cheios de clichês, não há nada de errado nisso. Talvez o problema seja quando temos preguiça de procurar nossa vida por entre os clichês em torno dos quais acabamos nos acostumando a viver.


Minha Vida, Meus Clichês

Persona nos empurra e cutuca até o momento do apagamento dos rostos de seus personagens. O que acontece a partir daí se dá dentro de nós, espectadores – em nossa capacidade de introspecção. Portanto, “finais” que apontam para o aberto, como a própria vida o faz. Foi o filósofo francês Gilles Deleuze quem sugeriu que a sensação é o contrário do clichê. Ela se articula tanto ao objeto que é visto quanto ao sujeito que observa. E a sensação está nos corpos, não no ar (num jogo desencarnado da luz e da cor). A sensação age sobre a carne. “A sensação é o contrário do fácil e do pronto, do clichê, mas também do ‘sensacional’, do espontâneo...“ (5). O espectador precisa procurar experimentar um filme como experimenta seus próprios sonhos ou pesadelos. O outro lado do problema é perceber a natureza dúbia da imagem, que oscila entre a sensação e o clichê. Não é questão de ativar uma consciência intelectual, mas uma “profunda intuição vital”...

“Por um lado a imagem está sempre caindo na condição de clichê: porque se insere em encadeamentos sensório-motores, porque ela própria organiza ou induz seus encadeamentos, porque nunca percebemos tudo o que há na imagem, porque ela é feita para isto (para que não percebamos tudo, para que o clichê nos encubra a imagem...). Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê, na qual todos os poderes têm interesse em nos encobrir as imagens, não forçosamente em nos encobrir a mesma coisa, mas em encobrir alguma coisa na imagem. Por outro lado, ao mesmo tempo, a imagem está sempre tentando atravessar o clichê, sair do clichê. Não se sabe até onde uma verdadeira imagem pode conduzir: a importância de se tornar visionário ou vidente. Não basta uma tomada de consciência ou uma mudança nos corações.”(...)”. Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não se vê na imagem, tudo o que foi subtraído dela para torná-la ‘interessante’. Mas às vezes, ao contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o inteiro.” (6)

É apenas nosso vício por estórias lineares e finais felizes que, por preguiça, exige que um final previsível (clichê, estereótipo) surja na tela e se realize diante de nós – o que também não quer dizer que todo final feliz seja uma negação da obra indeterminada ou aberta; a questão não se restringe à obrigatoriedade de finais infelizes. É por isso que toda obra aberta incomoda a muitos – que reclamam e depreciam muito da maior parte a arte contemporânea. Porque os espectadores são convidados a realizar, mesmo que apenas em pensamento, alguma coisa que tem medo de fazer – são convidados a agir. É como se a possibilidade de fugir das responsabilidades de um ser realizador e produtor de sentidos e sensações fosse a sedução daquilo que se convencionou chamar de entretenimento – e não estou me referindo aqui as responsabilidades pesadas do dia-a-dia. Talvez seja por isso que Persona cansa a muitos: este filme é cinema. Porque não mastiga e cospe a estória direto na garganta dos bebês (do ponto de vista de Hollywood, o público). Persona, de Bergman, não é entretenimento – sem ressentimentos, simplesmente porque o entretenimento tem outros objetivos.

Notas:

1. Bernardo Bertolucci, cineasta italiano do pós-guerra, fala sobre cinema em Para Que Serve o Cinema?, Documentário de Sandro Lai, extra (sem data) que integra o dvd de La Luna (1979), filme dirigido por Bertolucci. Versátil Home Vídeo, 2006.
2. Comentários do Crítico de Cultura Teixeira Coelho em “Oficinas Culturais na TV”, capítulo “Cultura Para Quem Precisa”. TV Cultura de São Paulo, 27/07/ 2002.
3. GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard Des années mao aux années 80. Flammarion - Collection Champs Contre-Champs. In L'absurde et le réel: Jean-Luc Godard à propos de Persona d'Ingmar Bergman. Manifeste Revue Moderne - numero 2 – 2002.
http://revuemanifeste.free.fr/numerodeux/godard-absurde.html
4. JOUBERT-LAURENCIN, Hervé (org.). Pier Paolo Pasolini. Écrits sur le Cinéma. Petits Dialogues Avec les Films (1957-1974). Paris: Cahiers du Cinéma, 2000. Pp. 44 e 166.
5. DELEUZE, Gilles. Logique de la Sensation. Paris: Editions de la Différence, vol.I, 1980. P. 27.
6. ----------------------. Cinema II: A Imagem-Tempo. Tradução Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. Pp. 32-3. 


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