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Roberto Acioli de Oliveira

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5 de nov. de 2009

Fassbinder: Um Cineasta e Seu País


A questão era
evidenciar a raiz
anti-semita sobre
a qual a Alemanha

moderna fora
construída


Yann Lardeau resumindo
a intenção de Fassbinder
(1)



Esquecer e Reprimir (o Novo Pecado Original)

Durante muito tempo Rainer Werner Fassbinder procurou formas de mostrar a memória alemã no que ela guardava de mais sensível e problemático: o anti-semitismo e o genocídio. Na opinião de Anton Kaes, suas tentativas falharam (2). Fassbinder chegou a ser chamado de anti-semita, quando na verdade procurava apenas mostrar que a tendência anti-semita ainda era uma questão problemática na República Federal da Alemanha da década de 70 do século 20. Não é para menos, o povo alemão estava empenhado na tarefa de reprimir e esquecer os horrores nazistas. Por outro lado, muitos ex-nazistas estavam livres e ocupando postos chave da economia alemã – fato que inclusive está na gênese do grupo terrorista Baader Meinhof, cuja palavra de ordem foi exatamente não agir como seus pais, que viram Hitler subir ao poder e nada fizeram para impedir; por trás de tudo isso, afirmavam, estava o imperialismo norte-americano.

Fassbinder teve proibida a peça O Lixo, a Cidade e a Morte (Der Müll, die Stad und der Tod, escrita em 1975-6). O cineasta se baseou no livro de Gehard Zwerenz, A Terra é Tão Inabitável Quanto a Lua (Die Erde ist unbewohnbar wie der Mond, 1973), onde um judeu agia como especulador. Fassbinder, na peça, referia-se a ele utilizando o estereótipo anti-semita “judeu rico”, levantando suspeitas e debates em torno da real posição de Fassbinder a respeito do assunto. De acordo com Kaes e com inúmeras entrevistas de Fassbinder, sua intenção era denunciar justamente as pessoas que usavam e exploravam a figura do “judeu rico” para seus próprios interesses. (ao lado, o busto de Hitler. Todas as imagens deste artigo pertencem a Lili Marlene)

Em 1977, outro projeto, baseado no romance Débito e Crédito (Soll und Haben), de Gustav Freytag, foi rejeitado em função da suspeita de que Fassbinder estivesse usando, como na peça, figuras e motivos que poderiam ser interpretados como anti-semitas. Desta vez, Fassbinder planejou uma série de televisão em 10 episódios que seria uma história crítica da burguesia alemã do século XIX. Kaes se pergunta como se explica essa “obsessão cruel” de Fassbinder com relação a esse tópico (3).

A resposta é que no infame romance anti-semita Débito e Crédito Fassbinder imaginou haver encontrado as raízes não apenas da ideologia Nacional Socialista, mas também da ordem social da República Federal da Alemanha (a Alemanha do pós-guerra, até 1989). Fassbinder chegou a afirmar que este projeto era seu ajuste de contas com a pré-história do período Nazista, e que seria justamente através do anti-semitismo do texto de Freytag que os alemães poderiam chegar a um acordo com a história do país e com eles mesmos. O filme, “com a ajuda da televisão”, diria Fassbinder, seria capaz de conseguir isso. (ao lado, numa conversa, no momento que se pronuncia a palavra "mulheres", percebemos na parede a imagem do mulherengo Goebbels)

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Em sua opinião, foi a ideologia da burguesia alemã que produziu tanto o anti-semitismo quanto o Terceiro Reich - Hitler não foi um acaso. Entretanto, e este é o ponto chave, os valores atribuídos pela burguesia alemã a um “caráter germânico”, teriam sobrevivido na sociedade alemã – pelos menos, sejamos otimistas, até 1977, quando Fassbinder disse isso. Portanto, seu objetivo com esta série de televisão era empreender uma arqueologia da burguesia alemã. Fassbinder ficou bastante contrariado quando este projeto também foi rejeitado. Ele seria o ponto de partida para uma história da burguesia alemã, de meados do século XIX até a eclosão do Nacional Socialismo.

O livro de Freytag está cheio de estereótipos anti-semitas herança de séculos, até se tornarem parte da tradição literária. No filme, Fassbinder pretendia mostrar que aos judeus não foi dada outra opção senão agir como foi permitido. Eles tinham direito de ser agiotas - ocupação que vai contra o código de honra burguês. Por essa razão, segundo Fassbinder, eles eram odiados - alguém te força a agir de uma forma que ele não aprova e, quando você age, essa pessoa justifica a violência contra você. A razão para se basear no livro de Freytag foi evidenciar que para melhor descrever a opressão a uma minoria deve-se mostrar a que tipo de erros ela é forçada em função dessa opressão. Erros dos quais ela não pode ser acusada. Fassbinder explica:

“A burguesia precisava dos judeus de forma a parar de desprezar suas próprias atitudes, para conseguir sentir-se orgulhosa, importante e forte. O resultado final desse auto-ódio subconsciente foi a aniquilação em massa de judeus no Terceiro Reich. Foi realmente uma tentativa de arrancar o que as pessoas não queriam reconhecer em si mesmas. Esse relacionamento significa que de alguma forma a história dos alemães e dos judeus está ligada para sempre, não apenas durante o período de 1933 a 1945. Algo como um novo pecado original será passado para as pessoas que nascem e vivem na Alemanha, um pecado que não é mais leve porque os filhos dos assassinos agora lavam as mãos em inocência”(4)

Nos termos de Fassbinder, o solo que nutriu o anti-semitismo ainda estava fértil na Alemanha em que vivia. Essa “culpa que continua no subconsciente”, e o “perigo de uma perversão renovada da ideologia burguesa” são as pedras de toque de seu trabalho (5). Enfim, o que Fassbinder fez não foi anti-semitismo, apenas teria utilizado os padrões da narrativa anti-semita para empreender uma crítica radical do anti-semitismo. Em filmes como Num Ano com 13 Luas (In einem Jahr mit 13 Monden, 1978), Lili Marlene (Lili Marleen, 1980) e O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1981), afirma Kaes, pode-se ver isso claramente – não apenas nos padrões narrativos, mas também nos motivos visuais.

Nestes filmes, os personagens judeus não aparecem nem como oprimidos e muito menos como caricaturas de seres imorais. Eles são mostrados como intelectuais privilegiados ou homens de negócio influentes que se sentem superiores aos alemães. Fassbinder não pretendeu cair também na armadilha de falar em “nobres vítimas”, o que seria o anti-semitismo invertido – algo como amigos incondicionais dos judeus. Lá pelas tantas, Fassbinder percebeu que corria o risco de ser mal compreendido, tanto como alguém que sem saber repete estereótipos anti-semitas quanto como alguém que conscientemente repete estereótipos anti-semitas - ainda que com o objetivo de desconstruí-los. Não se pode esquecer afinal de contas que, quando Fassbinder se refere “aos alemães”, também está falando sobre ele mesmo.

Notas:


1. LARDEAU, Yann. Fassbinder. Paris: Éditions de l'Étoile/Cahiers du Cinéma, 1990. P. 207.
2. KAES, Anton. From Hitler to Heimat. The Return of History as Film. Massachusetts: Cambridge Univ. Press, 1989. P. 90.
3. Idem, p. 92.

4. Ibidem, p. 94.
5. Ibidem.


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