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Roberto Acioli de Oliveira

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28 de abr. de 2011

Godard e a Distopia de Alphaville (I)




“Para nossa
infelicidade
, o
mundo é real
. E
eu
, para minha
infelicidade
,
sou Alfa
60”




A Capital da Dor

Lemmy Caution chega a Alphaville com seu carro branco e se registra no hotel como Ivan Johnson, repórter do jornal Fígaro-Pravda. É levado ao seu quarto por uma sedutora, que se oferece para entretê-lo. Lemmy recusa e logo está lutando e atirando num policial que se encontrava em seu banheiro. Expulsa a sedutora e a seguir é avisado que a senhorita Natasha von Braun está chegando a seu quarto. Ela anuncia que será sua acompanhante enquanto ele estiver na cidade. Lemmy descobre que Natasha não sabe o significado da palavra “amor”. Descobre também que ela é filha de um cientista renegado, o professor von Braun. Lemmy sai em busca de Henry Dickson, um antigo espião. Ele está mal e, mas antes de morrer avisa a Lemmy que deve destruir Alfa 60 e lhe passa um livro de poesias, Capital da Dor. Lemmy vai ao encontro de Natasha numa conferência de Alfa 60, mas sai antes do fim e Natasha tenta explicar o objetivo daquilo. Na recepção de gala, que consiste numa seção de fuzilamentos de dissidentes, Lemmy reconhece o professor von Braun, mas não consegue falar com ele.




‘Estamos próximos ou
distantes de nossa consci
ência?’
Há palavras que eu não
compreendo
: ‘consciência’”
 

Natasha tentando ler
Capital da Dor



Levado para um interrogatório com Alfa 60, Lemmy é apresentado ao centro nervoso enquanto o computador processa as respostas daquele estranho homem. Nessa ocasião, ele será informado que Alphaville declarou guerra ao país de Lemmy, as terras exteriores. De volta ao hotel, Lemmy mostra o livro a Natasha e pergunta se ela reconhece algumas das palavras (banidas pelas autoridades de Alphaville) nos poemas. Lemmy a faz entender que apagaram da memória dela que ela não nasceu em Alphaville, mas nas terras exteriores. Ele também diz que está apaixonado por ela. A polícia chega e o leva para interrogatório com Alfa 60, que já conhece a verdadeira identidade dele. Mas Lemmy propõe um enigma ao supercomputador que quando resolvido garantirá sua destruição. Foge de lá e procura o professor Braun, mas não consegue convencê-lo a mudar de lado. Enquanto isso, Natasha havia sido presa, mas Lemmy a liberta e fogem para as terras exteriores enquanto Alphaville se destrói. Lá pelas tantas, Natasha consegue dizer “eu te amo” para Lemmy.

O Futuro no Presente


“Teus  olhos  retornaram
 de  um  país  arbitrário,
  onde ninguém nunca
soube  o  que
é olhar”


Natasha lendo
Capital da Dor



Enquanto ainda era apenas um projeto em fase inicial de filmagem, chamava-se provisoriamente Tarzan versus IBM (1). Quando o filme tomou corpo seu nome mudou para Alphaville (Alphaville. Une Étrange Aventure de Lemmy Caution, 1965). É o nono longa-metragem de Jean-Luc Godard em cinco anos desde sua estréia com Acossado (À Bout de Souffle, 1960), sendo que no mesmo ano ainda dirigiria O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou) e Masculino Feminino (Masculin Féminin). Esteticamente, o filme combina ficção científica e filme noir, um hibridismo típico do Godard da década de 60 do século passado. O cineasta não montou cenário e também não utilizou efeitos especiais, sem interesse nisso e sem dinheiro se o tivesse, Godard simplesmente saiu pelas ruas de Paris em 1965. Usando o que encontrava a mão, focalizou detalhes arquiteturais e elementos tecnológicos para representar um futuro latente no presente. Optou pelo preto e branco, sugeriu Chris Darke, porque a presença do futuro demandava que esta ficção científica fosse filmada na luz do passado, o claro-escuro assombrado do expressionismo alemão e o monocromático do filme noir.



“O  desespero  não  tem
asas nem o amo
r. Mas estou
tão vivo quanto meu amor
e meu desespero”

 

Lemmy lê mais exemplos de
Cidade da Dor para Natasha



Naquela época Paris estava atravessando uma fase de modernização. Godard capturou esse clima, mas o fez de uma forma tão abstrata (salvo pela imagem nos créditos iniciais, nenhum anúncio, outdoor ou coisas do gênero; no extremo oposto de filmes como Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni, 1970) que Alphaville não parecesse um filme datado (salvo, talvez, pelos computadores estilo “geladeira” como fitas de rolo enormes). Em Novo Mundo (Le Nouveau Monde, episódio de Rogopag. Relações Humanas, 1962) já se ensaiam alguns temas que seriam desenvolvidos em Alphaville. Após uma explosão atômica sobre Paris, um homem descobre que todos a sua volta se transformaram, que o mundo mudou e ele é o único humano remanescente entre uma multidão de mutantes. De acordo com o novelista inglês J. G. Ballard, filmando as estruturas mais modernas que Paris podia oferecer em 1965 (como o prédio da Radio Televisão Francesa), além de uma cuidadosa seleção de detalhes, permitiram que Godard mostrasse na paisagem do presente as fantasias da ficção científica como algo tão real quanto um edifício de escritórios (os prédios onde só se vê uma fachada de janelas), um aeroporto ou uma campanha presidencial.

Outro Mundo é Possível




A Poesia Pode
Ser Como Uma
Arma Carregada







Godard admitiu ser incapaz de imaginar a sociedade do futuro, mesmo que fosse apenas uma projeção de vinte anos. O que ele fez em Alphaville foi acompanhar um homem de vinte anos antes que descobre o mundo do futuro e não consegue acreditar, mas que deverá ser capaz de enfrentar a “tirania da máquina” com as únicas armas de que dispõe: alguma astúcia, uma arma carregada e poesia lírica. Além disso, Lemmy e Natasha comentem o “crime de amar-se”. Em Alphaville, amor não significa transgressão carnal, como em parte seria o caso de Winston Smith e Julia em 1984 (George Orwell, 1949, com versão cinematográfica dirigida por Michael Radford, 1984), mas um romantismo casto. Amor é um crime porque permite que a imaginação dos amantes construa a idéia de que outro mundo (diferente daquele que Alfa 60 determinou) é possível. A imaginação não-policiada é o inimigo soberano, portanto na distopia de Alphaville ninguém permitirá que você sonhe – no início do filme, quando Lemmy chega ao hotel quarto do hotel a sedutora que o acompanha indica o local dos tranqüilizantes no banheiro.



Alphaville
apresenta uma
espécie de realismo e
m
curto-circuito
, que serve
para tornar estranha uma realida
de que já é vista
como algo muito
estranho
(2)



Os filmes de Godard desse período deixam explícitas as ligações entre a emergente sociedade de consumo, a aparência de suas estruturas e objetos, assim como a inevitável transformação das pessoas em objeto. Marie-Claire Ropars-Wuilleumier apontou a proximidade de Alphaville com Uma Mulher Casada (Une Femme Mariée, 1964). Um jovem casal, Charlotte e Pierre, vivem num recém construído apartamento bloco de apartamentos em Paris. Ele é um engenheiro e ela uma jovem mãe. É a exploração da vida emocional dela, dividida entre seu marido e seu amante que estrutura a trama. Uma divisão que espelha a existência fragmentada dela dentre os muitos incentivos ao consumo que a rodeiam. Em Alphaville isso se estende até a perda da linguagem, que acontece quando os personagens de Godard começam a falar na linguagem da propaganda. A ficção científica, Darke explica, dramatiza a pergunta “o que aconteceria se...?”. Alphaville captura a projeção convencional da ficção científica de um futuro distópico e sugere: “Esqueça ‘o que se’?”, olhe a sua volta! ‘Se’ já está acontecendo!”. A estética da Nouvelle Vague de filmar nas ruas atinge a apoteose em Alphaville.




Alphaville
é quase tod
a
constituída de
não-lugares





Para tanto, Darke explica, Godard filmou em algumas das estruturas mais novas de Paris, incluindo o prédio circular da Rádio e Televisão francesa (ORTF) e o prédio da Esso em La Défense, e os blocos de apartamentos de baixo custo sarcasticamente encaixados no filme como “hospitais da longa doença” – centros de reeducação para os “desajustados” de Alphaville. Em 1965 a cidade moderna e sua periferia passaram por uma obsessiva geometrização e design padronizado, que foi acompanhado de julgamentos relativos a isolamento, alienação e automação. Na época de Alphaville, a cidade moderna foi associada a uma imagem diatópica, que vai piorando na medida em que a câmera se afasta do centro antigo. Alphaville é quase toda constituída de não-lugares, zonas de transição (corredores, escadarias, escritórios, quartos de hotel) intercaladas com sua característica sinalização (setas, números, luzes de neon). Mas o espaço narrativo esculpido por Godard, conclui Darke, é um labirinto, embrulhado e estranho.




Então, ninguém aqui sabe
o que quer dizer
a palavra 'consciência'? Paciência!

Natasha pergunta e se contenta
com a ausência de uma resposta



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Distopia

Antonioni na Babilônia (I), (II), (final)
Chaplin e o Macarthismo
O Grande Irmão Está Vendo Você
Truffaut e Seus Livros
Pasolini e o Sexo Como Metáfora do Poder (I)

Notas:

1. DARKE, Chris. Alphaville. New York: I.B. Tauris, 2005. Pp. 10, 12, 26, 27, 30, 31, 33.
2. Idem p. 30.  


26 de abr. de 2011

A Mulher de Jean-Luc Godard



A única menção
que Brigitte Bardot
fez de seu trabalho em
O Desprezo
com Godard
foi de ele ter dito para
ela “ser  mais  como
Karina”
. Ele nega (1)




Deixando para trás uma infância e adolescência difíceis na Dinamarca, Hanne Karin Bayer foi mandada embora por sua mãe de seu “quase nunca lar” – só viu seu pai duas vezes na vida e sua mãe nunca lhe deu afeto, muito menos amor. Chegou a Paris de carona em 1958 e morava num quarto na Maison Danoise, próximo ao Champs Élysées. Ela não falava francês, certo dia num restaurante Hanne achou algo no cardápio que só custava 20 centavos e pediu. Então um garçom gentil explicou que aquilo queria dizer “couvert artístico”. Certa vez ela estava no Les Magots, um bar que o filósofo Jean-Paul Sartre tornou famoso, e foi abordada por uma fotógrafa. Em princípio desconfiada, Hanne aceitou ao saber que haveria dez pessoas no mesmo local. Depois do trabalho, a fotógrafa disse que ela não tinha muito talento, mas deu-lhe alguns endereços. A partir daí, choveram ofertas de trabalho. Hanne estava fotografando para a revista Elle quando conheceu Coco Channel. Questionada sobre o futuro, Hanne disse queria ser atriz. Com aquele nome ficaria difícil, retrucou Channel. Nascia então o pseudônimo Anna Karina (2). (imagens, Viver a Vida)


    
O Pequeno Soldado,
primeiro filme de A
nna
Karina
, seria proibido
pela censura francesa
durante três anos




Ela estava ganhando dinheiro agora, mas como ainda era menor tinha muitos problemas – como não ter direito a um talão de cheques, mesmo morando num pequeno apartamento no Champs Élysées e sendo vizinha de Marlon Brando. Seu sonho era juntar dinheiro e entrar para a escola dramática. Ela sabia que o importante agora era aprender francês e conseguiu passando todo o tempo livre no cinema. Assistia aos filmes vezes sem conta até que os diálogos fizessem sentido. Era o final do verão de 1959, já fazia um ano que estava em Paris quando ela recebeu um telegrama. Godard ainda não havia terminado as filmagens de Acossado (A Bout de Souffle, 1960), quando concordou em fazer o próximo, O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1960). Anna se apresentou a Godard, ele a olhou de cima a baixo e disse que ela estava contratada. Confusa, ela perguntou sobre filme. “Um filme político”, disse Godard. Anna disse que não sabia nada sobre o assunto e ele insistiu que bastava ela fazer o que ele mandasse. Houve um mal entendido quando a imprensa noticiou que Godard encontrou uma “amiga” para seu próximo filme. Em lágrima Anna disse que não era prostituta, mas Godard se explicou – levando 50 rosas na mão. O próximo problema era a minoridade de Anna, mas depois de duas tentativas conseguiram que a mãe dela viesse a Paris assinar uma autorização.



“Anna  Karina,

  que é realmente uma
 atriz nórdica, tem muito
 em comum com os atores
 do cinema mudo. Ela atua
 com seu corpo todo, de
 modo   algum   num
estilo psicológico”

Godard (3)



Godard e Anna Karina se casam em 1961, durante as filmagens de Uma Mulher é Uma Mulher (Une Femme est Une Femme), uma comédia musical que Colin MacCabe classifica como “o mais alegre dos filmes de Godard” ou talvez seu único filme alegre de fato. Depois do sucesso de Acossado, O Pequeno Soldado foi censurado e Uma Mulher é Uma Mulher foi um fracasso comercial. Então veio Viver a Vida (Vivre sa Vie, 1962), a tragédia de uma prostituta. Se o sinal de Uma Mulher é Uma Mulher é alegria e nascimento, o de Viver a Vida é tristeza e morte. E ao que parece foi o destino de Anna Karina, a gravidez que havia chegado durante o filme anterior acabou num aborto espontâneo que a deixou infértil. Triste destino de uma mulher filha de pai ausente e que nunca foi amada pela mãe. Anna Karina participará ainda de Band à Part (1964), Alphaville (1965), O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965), Made in USA (1966). Seis anos depois do encontro de amor da completamente carente Hanne Karin Bayer com um Godard ciumento e obcecado pelo cinema o casamento acaba. Esta fase da obra de Godard passou à história como “os anos Karina”.

Notas:

1. MacCABE, Colin. Godard. A Portrait of the Artist at 70. London: Bloomsbury Publishing, 2004. P. 396n72.
2. Idem, pp. 127-9, 135, 141.
3. Ibidem, p. 160.  

24 de abr. de 2011

Religião e Cinema na França




Quem foi
que disse
que o fundamentalismo
católico não fala
francês?



 
No Começo Era o Fim

Em geral, ressaltou Yannick Dehée, durante a era do cinema mudo os filmes que retratavam personagens ou episódios bíblicos eram “respeitáveis”. Vale dizer, não questionavam aquilo que a Igreja Católica afirmava como a Verdade. Basta pensar em filmes norte-americanos como Ben Hur (direção Fred Niblo, 1925), Os Dez Mandamentos (The Ten Comandments, direção Cecil B. de Mille, 1923) e, na França, Golgotha (direção Julien Duvivier, 1935). Contudo, para desespero da Igreja, ao logo do tempo surgiram exemplos do que ela considerava blasfêmia. Em 1936, a encíclica Vigilanti Cura, do Papa Pio XI, deplorou “os tristes progressos da arte e da indústria cinematográficas na divulgação do pecado e do vício”. Na França, durante a ocupação nazista, o governo colaboracionista de Vichy colocou em prática o programa de Pio XI e interditou perto de 200 filmes através de um Cartel de Ação Moral. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Igreja francesa passa a exercer uma verdadeira censura sobre o conjunto do cinema francês (1).



Os cineastas franceses
não podem reclamar da sorte
,
pois poderiam até mesmo ter sido guilhotinados
...



Em 1946, fundou-se a Central Católica do Cinema (CCC), que examinava cada filme do circuito comercial e os classificava como: “filmes para todos (3)”, “para famílias (3b)”, “para adultos (4)”, “para adultos informados (4ª)”, “desaconselhável (4b)”, “ para banir (5)”. Os julgamentos eram amplamente divulgados na imprensa, em particular pela Radio Cinéma (futura Télérama). No caso do item número 5, os produtores de um filme eram livres para negociar os cortes necessários para liberar a obra. Dentre aqueles que a CCC desaconselhou na década de 50 estavam O Corvo (Le Corbeau, Henri-Georges Clouzot, 1943), O Vermelho e o Negro (Le Rouge et le Noir, direção Claude Autant-Lara, 1954), La Ronde (direção Max Ophüls, 1950), Le Blé en Herbe (direção Autant-Lara, 1954) e As Diabólicas (Les Diaboliques, direção Clouzot, 1955). Em 1961, a CCC se transforma no Ofício Católico para o Cinema, e amolece os julgamentos para: “filmes para todos (T)”, “para adultos e adolescentes (AO)”, “para adultos (A)” e “contestáveis (C)”. Nos anos 70 o Ofício perde pouco a pouco sua influência.

Jacques Rivette e Diderot



Ao que parece,
a  Revolu
ção   Francesa  não
foi suficiente para inaugurar
um Estado laico




O cineasta francês Rivette queria adaptar o romance de Denis Diderot (1713-1784), A Religiosa. A comunidade católica francesa se pôs em polvorosa mesmo antes que qualquer imagem tivesse sido filmada. Desde a apresentação do roteiro à “comissão de controle” em 1962, o filme já estava ameaçado de interdição total, o início das filmagens tendo sido autorizado apenas em 1964 sob “advertência”. O anúncio dessa decisão só faria aumentar as pressões de origem religiosa sobre Alain Peyrefitte, então Ministro da Informação, que cedeu. Em sua maioria, a imprensa foi contra a interdição de A Religiosa. Os religiosos diziam que a obra possuía um tom blasfematório que os desonrava. Yvon Bourges, o ministro seguinte, acaba interditando o filme em 1966. Seria preciso esperar até julho de 1967 para que A Religiosa passasse novamente pelas mãos da comissão e pudesse chegar finalmente aos cinemas. O mais curioso, é que todo esse barulho aconteceu em função de um filme cuja fonte é um livro existente na França desde 1796 (tendo sido publicada em partes a partir de 1760)! (2) (todas as imagens, A Religiosa)


Muito antes
dos   escândalos   de
p
edofilia na Igreja Católica,
A Religiosa
atacou os

abusos da religião




Em 1975, o Conselho de Estado confirmou a irregularidade da interdição feita pelo Ministro e reconhece enquanto tal a liberdade de expressão cinematográfica. André Malraux, então Ministro da Cultura, que em outra época já havia salvado muitos filmes das mãos da censura (como Uma Mulher Casada, de Jean-Luc Godard), não se mexeu: contentou-se em mandar A Religiosa para representar a França no Festival de Cannes. Godard escrever-lhe uma carta onde colocava claramente todo o seu descontentamento com a subserviência de Malraux e chamava a censura de “essa Gestapo do espírito”. Por outro lado, Jeanne Favret-Saada acredita que o “caso A Religiosa” não resultou de uma manobra da Igreja Católica ou do Estado gaulista (3) para censurar o filme. A violência sofrida por Rivette resultaria de uma reação epidérmica de tradicionalistas chocados com o Concílio Vaticano II (que tratou das relações entre a Igreja Católica e o mundo moderno) e de gaulistas oportunistas procurando ganhar votos no eleitorado católico.

Godard e a Censura



Se o governo
civil franc
ês foi capaz disso,
imagine  o  governo militar

brasileiro



Entretanto, para Colin MacCabe, o presidente Charles De Gaulle já havia demonstrado sua determinação de aprofundar o controle do Estado sobre a decisão de quais filmes o público Francês poderia assistir (4). A partir de 1960, as decisões da censura se tornaram atribuição ministerial. Jean-Luc Godard sentiu o peso dessa mudança muitas vezes. O mais ilustre exemplo foi O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1960), um filme que questionava a presença militar francesa na Argélia e só chegou aos cinemas três anos após sua conclusão. Outro caso foi o corte de cenas do presidente norte-americano Eisenhower e de Gaulle em Acossado (A Bout de Souffle, 1960), ou ainda Uma Mulher Casada (Une Femme Mariée: Suite des Fragments d’un Film Tourné en 1964, 1964), obrigado a mudar de título. Godard se tornou particularmente suscetível à opressão nos encontros com o censor. Talvez por esse motivo, sugere MacCabe, no começo dos filmes do cineasta o número do visa que aparece nos créditos (e que afirma que o ministro permitiu o lançamento daquele filme) seja tão maior do que as letras do restante das informações.


Com Je Vous Salue Marie, Godard se tornaria alvo dos fundamentalistas   católicos
e  dos   aproveitadores   que

puxam o saco da Igreja em
busca de votos ou platéia



O governo voltaria à carga em 1968 com a demissão de Henri Langlois da Cinemateca de Paris. Há quem diga que essa atitude do governo foi um importante tiro no próprio pé. No dia seguinte, cineastas franceses e de todo o mundo bombardearam a Cinemateca com telegramas proibindo a utilização de seus filmes: Abel Gance, Alain, Resnais, Georges Franju, Chris Marker, Alexandre Astruc, Robert Bresson, Richard Lester, Lindsay Anderson, Carl Theodor Dreyer, Akira Kurosawa, Nagisa Oshima, Jerry Lewis, Charles Chaplin, Roberto Rossellini, Fritz Lang, entre outros. Um boicote organização pelo Cahiers du Cinéma. No primeiro de uma série de ferozes explosões a respeito de A Religiosa, Godard publicou no jornal Le Monde em abril de 1966 um agradecimento ao Ministro do Interior que baniu o filme, porque agora ele podia ver a verdadeira cara da intolerância. Em sua carta aberta a Malraux, publicada dois dias depois no Le Novel Observateur, ele foi mais extremo. De fato, a atitude de Malraux é no mínimo contraditória, ao permitir que a França fosse representada em Cannes por um filme que os franceses foram proibidos de assistir.

Leia também:

A Religião no Cinema de Carl Dreyer
Religião e Cinema na Itália
Roma de Pasolini
O Silêncio de Pasolini
A Saga dos Dialetos Italianos no Cinema
Ricota de Pasolini
Buñuel, o Blasfemador (I), (II), (final)
Ingmar Bergman e a Prisão do Espírito

Notas:

1. DEHÉE, Yannick. Mythologies Politiques du Cinéma Français. Des Anées 1960 Aux Anées 2000. Paris: Puf, 2000. Pp. 72-3.
2. Idem, pp. 74-6.
3. Gaulismo é uma postura ideológica baseada nas idéias de Charles de Gaulle, então presidente da França.
4. MacCABE, Colin. Godard. A Portrait of the Artist at 70. London: Bloomsbury Publishing, 2004. Pp. 201-2, 399n14. 


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