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Roberto Acioli de Oliveira

Arquivos

18 de abr. de 2018

O Cinema Francês e a Indochina


“A França sempre relutou em confrontar seu próprio passado; 
‘amnésia’  é  uma  palavra frequentemente utilizada ao se referir
  à  colonização  e  descolonização,  mesmo em trabalhos [...] como  
Lieux  de  la  Mémoire  (1997),  editado  por  Pierre Nora (...) (1)

Triângulo Amoroso e Colonialismo

Éliane Devries nasceu de pais europeus na colônia francesa da Indochina e se tornou a dona de uma fazenda de seringueiras produtora de borracha em Anam – região que compreende mais ou menos o que no futuro se transformará no Vietnã. Ela adotou a pequena Camille, na realidade filha dos reais donos da terra herdada por ela. Éliane, que nunca esteve na França, não se veste como uma ocidental e se diz filha daquela terra. Contudo, aparenta saber exatamente qual é o seu lugar e trata seus funcionários com pulso firme. Certa vez, ao repreender um deles com chicotadas perguntou: “você acha que mães gostam de bater em seus filhos?”. Durante a década de 1930, tudo vai bem para os franceses: os colonizadores tiram todo o lucro que conseguem, enquanto a população é mantida em estado de indigência e fome – exceto a elite local ananita, que é pró-Ocidente, pró-domínio colonial e anticomunista. Camille, que cresceu como uma europeia e viveu boa parte de sua curta vida na França, não parece se importar em nada saber a respeito da relação de sujeição dos habitantes locais ao invasor francês. Enquanto isso, Éliane se apaixona por Jean-Baptiste, oficial da marinha francesa. Guy, chefe da polícia francesa, também é apaixonado por Éliane, mas ela nunca se entregou a ele – embora utilize seus serviços de cão de guarda do colonizador. Camille está sendo preparada para se casar com Shen, outro filho da elite ananita local rica e pró-ocidental. Durante um atentado nas ruas da cidade, Camille será ferida. Socorrida por Jean-Baptiste, os dois se apaixonam imediatamente.


 Anam  é  a  região  da  Indochina  francesa  representada
no filme - correspondente ao futuro Vietnã. Por este motivo, em
  Indochina  os  nativos são sempre chamados de ananitas 

Depois de algumas cenas da discórdia que se segue entre mãe e filha, Camille começa a olhar para os lados e percebe como vive seu povo: subjugado, subnutrido, sem direitos e cheio de deveres para com o invasor, colonizador, que se autointitula civilizador. Ela acaba fugindo de seu idílio de herdeira da grande propriedade e termina sendo vendida como escrava – cujo comércio é “supervisionado” pelos franceses. Jean-Baptiste, que havia sido enviado para aquele local como punição por insubordinação, salva Camille e torna um proscrito ao fugir com ela – o casal será ajudado por Shen, que agora é um líder comunista comprometido com a independência do país. Eles acabam tendo um filho, Etienne, que Jean-Baptiste entrega a Éliane e se suicida. Anos depois, o “benevolente” governo colonial anistia todos os presos e Camille reencontra Éliane. É tarde demais para essa família, Camille está agora comprometida com a causa da guerrilha comunista que pretende expulsar os franceses e quer esquecer seu passado. No final, compreendemos que durante todo o tempo a voz de Éliane que escutamos como uma narração é o momento em que ela conta para o filho de Camille e Jean-Baptiste a história dele. Naquele momento todos estão em Genebra, na Suíça, onde uma comitiva vietnamita veio assinar o tratado de paz com a França, que dividirá o país em dois, o Vietnã do Norte, comunista e o sul, pró-capitalista – uma independência que não duraria muito tempo. Camille está na comitiva e Éliane pergunta ao filho dela, que já é adulto, se quer encontrá-la. Ele recusa, argumentando que seriam dois estranhos tentando conversar. Então define a situação explicando para Éliane: “você é minha mãe”.

Missão Civilizatória Defunta


(...)  [Indochina]  oferece  uma  visão consensual do colonialismo
 através da reconstrução do passado baseado em estereótipos (...)” 

Brigitte Rollet (2)

Com Indochina (Indochine, direção Régis Wargnier, 1992), o cinema francês quebraria um jejum de muitas décadas. Relutante em confrontar seu passado, especialmente em relação ao tema do colonialismo e, principalmente, da descolonização. Ao contrário de muitos cinemas nacionais que mostram as mazelas de suas sociedades, podemos citar filmes neorrealistas italianos que despertaram a fúria de personalidades conservadoras (Giulio Andreotti, primeiro ministro da Itália por vários mandatos, apoiava aqueles que diziam que “roupa suja se lava em casa”), a França parece não se enquadrar nessa tendência. De acordo com Brigitte Rollet, pelo menos até o início dos anos 2000 existia na França um silêncio amargo em torno dessas guerras que o país perdeu e que levaram ao fim do próprio império. Ainda segundo ela, “amnésia” é a palavra mais utilizada quando o assunto é colonização e descolonização, mesmo em trabalhos acadêmicos. Indochina e Argélia foram descritas como um “não lugar na memória”, o que explica em parte a ausência de filmes relativos a esses conflitos. É o que sugere Rollet, para quem este é particularmente o caso da Indochina, que, apesar de ser chamada de “a pérola do Império”, inspirou menos diretores franceses do que a colônia da África do Norte. Em torno de 150 filmes (incluindo coproduções) foram realizadas no Maghreb argelino entre 1911 e 1961, enquanto apenas alguns documentários e filmes de ficção foram feitos entre 1920 e 1930 nas colônias do oriente. Wargnier afirmou que sua intenção foi mostrar a colonização através de um filme onde nada foi inventado, mostrando uma colonização como ninguém havia visto antes. Contudo, pelo contrário, Rollet considerou que Indochina oferece uma visão consensual do colonialismo ao reconstruir o passado através de estereótipos (3). (imagem abaixo, o caótico campo de batalha em 1954 onde os franceses, entrincheirados na lama, perderam definitivamente a posse da Indochina, Diên Biên Phu, 1992)


 Em 1939 o império francês, ou seja, a soma dos habitantes da França
  e das populações das regiões que ela pretendia  “desinteressadamente 
 salvar”   da   própria ignorância,  contava  110  milhões  de  habitantes.
 Diên Biên Phu,  mostrou  a  perda do controle sobre 40 milhões deles

Entre 1945 e 1956, os franceses viam a Indochina apenas através do noticiário, como esse período cobre a guerra de independência, invariavelmente o que se apresentava era apenas a versão do governo francês. Depois da guerra, continua Rollet, alguns poucos filmes abordaram o assunto, algo entre treze ou quatorze produções. Mãos Vermelhas (Goupi Mains Rouges, direção Jacques Becker, 1942) ou O Juiz e o Assassino (Le Juge et l'Assassin, direção Bertrand Tavernier, 1976) abordam a questão apenas de forma enviesada ao incluir antigos expatriados da Indochina. O cinema francês não abordou seu passado colonial da mesma maneira como os Estados Unidos fizeram em relação a seu fiasco no Vietnã. Para Rollet, a tesoura da censura não poderia explicar sozinha o persistente silêncio do cinema francês. Dito isso, ainda mais surpreendente, na opinião de Rollet, que apenas em 1992 tenham sido lançados nada menos do que três filmes a respeito do conflito: além de IndochinaDiên Biên Phu (direção Pierre Schoendoerffer), com o maior orçamento do cinema francês até então, e O Amante (L’Amant, direção de Jean-Jacques Annaud). Este interesse repentino sobre o Extremo Oriente poderia ser explicado por alguns fatores. A então recente agitação na África do Norte; desejo por exotismo; nostalgia consciente ou inconsciente pelo império perdido; e/ou a aceitação tardia da descolonização. Em princípio, Rollet acha difícil discordar do interesse pelo exótico, agências de viagens utilizavam imagens dos filmes e críticos em artigos enfatizaram as belas paisagens, ao invés de comentar sobre a problemática relação da França com sua antiga colônia e as ambiguidades de sua “missão civilizatória”.


 Indochina é um drama  épico que se passa nos últimos vinte 
anos da presença francesa naquela região, acontecimentos históricos
são entrelaçados  com  as  vidas  de  personagens  fictícios  (4)

Rollet até admite que a escolha de Erik Orsenna e Louis Gardel como corroteiristas poderia levar a crer numa perspectiva séria em relação aos assuntos coloniais por parte de Wargnier – Orsenna havia ganhado em 1988 o prêmio Goncourt, por seu livro L’Exposition Coloniale; Gardel escreveu a respeito do império na África do norte, em Fort Saganne (1980), que virou filme em 1984. Ao mesmo tempo, Wargnier sempre admirou o britânico David Lean e considerava Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, 1962) seu filme favorito. Inicialmente, sua intenção era reescrever Madame Butterfly no contexto da colonização francesa da Indochina. Embora tenha mantido o elemento da jovem asiática (Camille) que se apaixona pelo oficial francês, Wargnier mudou a perspectiva. O personagem principal de Indochina não é uma jovem nativa, mas uma mulher francesa Éliane Devries. O caso de amor se transforma num triângulo entre ela, Camille e Jean-Baptiste. A história é ambientada nos últimos vinte anos da presença francesa na Indochina, sendo construída como um drama épico. Alguns eventos históricos são articulados com as vidas dos personagens fictícios, como o massacre da baía Yam e suas consequências na França e na Indochina. Outro exemplo é a soltura de Camille da prisão de Poulo Condor durante uma anistia do governo direcionada aos presos políticos. Foi uma atitude do governo francês da Frente Popular, liderado por Léon Blum, em 1936. Lá Camille definitivamente se torna uma comunista, sendo chamada  de “rainha vermelha” pelo povo.


Apesar de paisagens bonitas, a abordagem de Indochina em relação
ao  colonialismo é estereotipada,  podendo  facilmente  ilustrar  a  tese
de Albert Memmi sobre a relação entre o colonizador e o colonizado

Além de melodrama (as exigências do amor, família e dever), Indochina apresenta também elementos típicos do “filme colonial” segundo Pierre Boulanger (utilização extensiva de ambientes naturais e a cor local). A sequência de abertura evoca um funeral tradicional em imagens que Rollet considera semelhantes aos documentários de “costumes nativos” do início do século XX. Ao invés do palácio Angkor, locação típica desses filmes, Wargnier optou por vistas aéreas da baía Hạ Long (o labirinto de águas e montanhas palco tanto do tráfico de escravos quanto da fuga de Camille e Jean-Baptiste), imagens típicas de outro tipo de documentário. Rollet ressalta a predominância dos brancos e do olhar ocidental. Os ananitas são secundários, sua presença se justifica apenas em função dos ocidentais, sempre presentes em todas as cenas. Na opinião de Rollet, a apresentação da colônia é completamente estereotipada, considerando inclusive os papeis no sentido definido por Albert Memmi em Retrato do Colonizador precedido por Retrato do Colonizado (Colonizer and Colonized, 1965), onde a visão do colonizador é para o exótico, enquanto o cotidiano dos nativos é só um pano de fundo. Rollet observa que, logo no início, vemos vários tipos de relação entre colonizador e colonizado. Camille, a ananita que pertence à aristocracia local e foi adotada pela ocidental, chega em um carro de luxo dirigido por um motorista indiano e vai dançar tango com Éliane. Simultaneamente, outra jovem ananita tem seus cabelos acariciados por um homem mais velho, seu amante. Na sequência seguinte, Éliane fala de maneira paternalista com seu cozinheiro ananita – no primeiro caso o colonizado é um “igual”, no segundo é “privilegiado”, no terceiro e mais inferior, não passa de serviçal doméstico.


Rollet afirma que Indochina reforça o estereótipo quando, por
 exemplo, representa  apenas  os  colonizados, não os colonizadores, 
cometendo maldades. A não ser que se considere que assim o filme
problematiza a maior  atrocidade, a própria  colonização  em si

Na primeira categoria, além de Camille no futuro, o único nativo privilegiado que muda de posição é Tanh. De volta de seus estudos na França, de onde foi expulso porque conseguiu enxergar o abismo existente entre a teoria da declaração dos direitos do homem e a realidade da vida nas colônias francesas, Tanh é mais um que foi para o Partido Comunista local. Rollet chama atenção também para o fato de que para suavizar a representação negativa dos colonizadores, os colonizados é que são mostrados agindo de forma negativa. Quando os prisioneiros políticos são torturados da delegacia de polícia (controlada por oficiais franceses), o torturador é um policial ananita. Durante a sequência do mercado de escravos (supervisionado pelo exército francês), é um mercador ananita que age de forma mais desprezível (examinando olhos e dentes dos escravos). Embora um oficial francês tenha matado uma criança minutos antes, isso não é mostrado. Ainda que possamos ouvir, também não assistimos quando Éliane chicoteia um de seus trabalhadores - quando observamos acontecer, noutra ocasião, quem bate é um ananita. (imagem abaixo, as seringueiras de Éliane)

Marguerite Duras e sua Indochina


 Embora  sua família fosse  muito pobre, a infância e adolescência de
 Duras foi boa, muitas crianças cambojanas e caminhadas na floresta

A escritora e cineasta francesa Marguerite Duras (nascida Donnadieu, 1914-1996) nasceu na Indochina de pais franceses. Mais especificamente, nascida em Saigon, na parte sul da Indochina, chamada Cochinchina – depois que os Estados Unidos foram expulsos da região, eles que “substituíram” os franceses, a cidade mudou de nome, passando a chamar-se Ho Chi Minh. O sobrenome, a escritora adotou depois que teve de seu mudar para a França. As primeiras brincadeiras de sua infância foram na companhia de crianças vietnamitas (ananitas). Ela só falava o idioma deles (que a mãe nunca conseguiu aprender) e como eles andava descalça – Éliane, que também se dizia filha da terra, nunca foi vista sem sapatos. A mãe dela insistia que os filhos compreendessem que eram franceses! Certo dia, conta a escritora, sua mãe esteve em Saigon e comprou maças vermelhas para se acostumarem com a comida francesa – lembrar aqui da preferência de Éliane por mangas, uma fruta nada francesa. Duras explicou que, embora a mãe não tivesse aprendido o idioma local, era professora de origem camponesa e, como a família era muito pobre, acabou tendo mais contato com os vietnamitas do que com os europeus. Até quatorze ou quinze anos de idade, Duras explicou, só teve amigos nativos. Se Indochina fosse baseado na biografia de Duras, ou, melhor ainda, na vida da mãe dela, a carga dramática seria outra. Embora as lembranças da infância e adolescência na colônia chamada de “pérola do oriente” sejam boas, a realidade de colonizadora da mãe era ruim e o filme não teria um final feliz.


Éliane  come  manga,  fala  o  idioma  e  se  veste  como  os  ananitas. 
A  mãe  de  Duras  não  falava  o  idioma,   porém  tinha  mais  contato
com ananitas do que europeus.  Como os autóctones,  a  escritora vivia
descalça, enquanto a mãe tentou convencê-la de que ela era francesa 
A história da mãe de Duras assume ares de saga, muito distante da “história de sucesso” da colonizadora Éliane. Os pais da escritora aceitaram o desafio de fazer a vida na colônia, logo no início o pai morreu e a mãe teve de criar sozinha os três filhos. Depois de vinte anos de serviço público, ela pegou suas economias e comprou um lote de terra no sul do Camboja, na cidade de Kampot, próxima do mar – talvez próxima demais. Então, quando perceberam a mulher sozinha, viúva, desprotegida, isolada, entregaram uma terra incultivável. Ela ignorava completamente, continuou Duras, que era preciso subornar os agrimensores que demarcariam a terra para conseguir uma terra fértil. Como resultado, recebeu uma terra que era invadida pela água durante seis meses do ano. A família foi arruinada, enquanto todo o dinheiro deles foi repartido pelos funcionários corruptos. Na opinião de Duras, quando a mãe morreu, a injustiça foi realizada completamente. Mas, antes disso, eles se mudaram para terras mais altas e Duras se lembra de ter vivido uma infância muito livre em plena floresta por dias inteiros, já que a mãe estava tão ocupada e meio louca que nem os vigiava mais. Quando se lembrava dos filhos, era para insistir com aquela coisa das maças e de ser francês (5). Para a escritora, aquele prédio de seu filme de 1975, India Song, representa o fim do mundo (especialmente do colonialismo então já praticamente morto e da Guerra Fria viva durante as décadas de 1960 e 1970).

Entre a Propaganda e o Protesto


Kabília, na Argélia, é muito mais próxima da metrópole. Tão perto
que  esta  parte  da  África  do  norte  chegou  a   ser  incorporada  ao
território   francês.    Evidentemente,  a  Indochina   também   gerava
renda  para a França, mas está localizada do outro lado do mundo

A descolonização da Argélia só foi alcançada em função da guerra pela independência, que durante bom tempo se chamou apenas a “guerra sem nome”. Naturalmente, a censura oficial francesa era muito sensível em relação aos problemas nas colônias. Lançado em 1953, o curta-metragem de Alain Resnais, As Estátuas Também Morrem (Les Statues Meurent Aussi), que fala sobre arte africana, mas também denuncia a mutilação da cultura africana pelos colonizadores, foi “guardado a chave”, para retomar a expressão de Chris Marker, seu coautor. Apenas em 1964, portanto depois da descolonização da Argélia, o filme será apresentado, mesmo assim com cortes. A adaptação do romance de Guy de Maupassant, Bel Ami, por Louis Daquin, que retraça a conquista da Argélia pelos franceses em 1830, será proibido até 1957. O Grande Crime (conhecido também como L’Objecteur, ou, ainda, Tu ne Tueras Point, Claude Autant-Lara, 1958), obra pacifista que toca no tema da objeção de consciência (recusa em obedecer ordens do superior militar quando estas vão contra os valores do indivíduo), cujo estatuto foi promulgado na França em 1963. Apresentado no Festival de Veneza como se fosse Iugoslavo, só pôde ser lançado na França em 1961, com treze sequências cortadas (6).


A França censurou todos os filmes que direta ou indiretamente
questionassem a política colonialista oficial.  Especialmente aqueles
 que  expunham  violência  policial,  tortura,  desertores  do  exército, 
e guerra homicida quando a descolonização se tornou inevitável

O projeto de Henry-Georges Clouzot, O Rio do Arroz Sangrento (Mort en Fraude, direção Marcel Camus, 1957), adaptado das histórias de Jean Hougron, que viveu o drama da Indochina, foi barrado porque sua ótica dos acontecimentos na Ásia e na África não está conforme a doutrina oficial. Rendez-vous des Quais (direção Paul Carpita, 1955), que retraça a manifestação dos estivadores de Marselha contra a guerra da Indochina, foi apreendido. A censura voltará a importunar Resnais mesmo no muito famoso documentário antinazista Noite e Neblina (Nuit et Brouillard, 1956), uma vez que o cineasta faz algumas alusões à descolonização – a seguir, também Muriel (Muriel ou le Temps d'un Retour, 1963) terá sua liberação atrasada, porque aborda a tortura. Patrouille de Choc (patrulha de choque) (Claude Bernard-Aubert, 1957), sobre a guerra da Indochina, teve de mudar o título para Patrouille de l’Espoir ou Patrouille sans Espoir (patrulha da esperança; ou sem esperança). Vários outros filmes questionando a posição do governo colonialista francês diante da Argélia foram censurados e ou os cineastas envolvidos passaram a ter dificuldades de trabalhar no cinema. Foi neste contexto que Godard lançou O Pequeno Soldado (Le Petit Soldat, 1963), denunciando a tortura aplicada por ambos os lados. No início da década de 1960, a censura passa a ser feita através do roteiro do filme, antes mesmo da filmagem – prática padrão na União Soviética desde Stalin.


No  documentário  La France est Notre Patrie  (2015),  o  cambojano
Rithy Panh  apresenta  imagens  das  colônias  sem  locução,   apenas
intertítulos como um filme mudo. Seu foco é a Indochina, mostrando
um povo de baixa estatura cambaleando entre os uniformes brancos

Lá por 1937, os franceses já estão desconfiados das intenções de Adolf Hitler. Quando anexou a Áustria e a Tchecoslováquia, uma série de filmes mais ou menos pacifistas já tentavam acalmar a população. Outros filmes, mostrando o império colonial, especialmente a Legião Estrangeira Francesa (unidade militar criada no século XIX, cuja função era controlar os territórios conquistados) operando no norte da África, prometiam aumentar a confiança na grandeza da França. L’Appel du Silence (direção Léon Poirier, 1936), baseado na biografia do missionário católico Charles de Foucauld, que encontrou sua vocação ao atravessar o Saara até ser assassinado, apresenta o mártir. Em Les Réprouvés (Jacques Séverac, 1937), um batalhão de renegados é atacado no deserto, para evitar prisioneiros o oficial envenena seu companheiro e explode tudo. Uma comédia, Un de la Légion (Christian-Jaque, 1936) apresenta Fernand, que prefere a Legião Estrangeira ao casamento. Em Le Roman d'un Spahi (Michel Bernheim, 1936), Jean deixa sua noiva e vai servir a pátria no norte da África (Senegal, Argélia e Guiné), depois descobre que ela vai se casar. Contudo, ele já tinha amante africana e filho. Morto em batalha, sua amante mata o filho e se suicida. No Marrocos, Les Hommes sans Nom (Jean Valée, 1937), segue a vida de um oficial da Legião Estrangeira. Em Les Hommes Nouveaux (Marcel L'Herbier, 1936), o construtor Bourron sacrifica o amor por sua mulher em função de seu objetivo, a coisa serve de pano de fundo para a exaltação de um personagem real, o general Lyautey (1854-1934), oficial francês que gostava de repetir uma frase de Shakespeare: “a alegria da alma está na ação”. O general também esteve na Indochina, onde conheceu Joseph Simon Gallieni, oficial francês que acreditava na “conquista civilizatória” (7).


A borracha da Indochina exportada para os Estados Unidos está
em La France est un Empire. Enquanto Hitler reivindicava “espaço
vital”   na   Europa,  as  colônias  francesas,   inglesas,  holandesas  e
belgas,  estavam  perfeitamente  integradas ao comércio mundial

Os franceses preferiam se agarrar às promessas das colônias, reserva de homens, comida e de matérias primas que geram confiança na metrópole. Em Légions d’Honneur (Maurice Gleize, 1938), dois amigos voltam do Saara, um deles se apaixona pela mulher do outro que o fere mesmo assim. No quartel, não acusar o amigo implica que será julgado culpado de automutilação voluntária e expulso da Legião Estrangeira. Trois de Saint-Cyr (Jean-Paul Paulin, 1939) exalta os valores da École Especiale Militaire, bandeira, casoar (cocar icônico dos cadetes de Saint Cyr), luvas brancas e virtudes patrióticas – é o mais vulnerável de três amigos que terá seu sangue derramado nas areias da Síria, outra colônia. Depois de 1938, houve uma enxurrada de filmes coloniais, reportagens, documentários e abordagens sentimentais. Les Sentinelles de l’Empire (Jean d’Esme, 1939) é um documentário que exalta o Império. L'esprit de Sidi-Brahim (Marc Didier, 1939) mostra que um comandante acusado de espionagem será salvo da morte pela confissão da verdadeira espiã – Sidi-Brahim foi o local de uma grande batalha na Argélia colonial, em 1845. Com vários segmentos, La France est un Empire (1938) passeia por algumas das colônias: Madagascar, Somália, Guiana, Antilhas, África do norte, África negra, Ásia (existe alguma coisa sobre a Indochina aqui). La Grande Inconnue (Jean d’Esme, 1939) procura analisar a alma da Legião Estrangeira. Em O Caminho da Honra (Le Chemin de l'Honneur, Jean-Paul Paulin, 1939), Martin deixa a Legião depois de cinco anos de serviço com honra. Mas é procurado por questões anteriores e convence o enfermo Paul a trocar de identidade com ele. No final Martin é apanhado, mas como tem boa ficha no exército lhe é dada a chance de morrer com honra no longínquo deserto marroquino.

“Evidentemente, [o cinejornal] semanal
  transforma  os  pontos de interrogação que
  podem surgir quanto a essa ou aquela colônia 
  em pontos de exclamação para a conclusão
obrigatória:  Viva  a  França!”  (8)

Documentários de propaganda do império se sucediam, como L’Empire Français (Philippe Este). Menos esquemático, Homme du Niger (Jean Baroncelli, 1940) exibe o colonizador francês na África como um ser gentil que veio para libertar os nativos infantilizados de suas crenças obscuras. O delírio da “missão civilizatória” transparece no discurso de Baroncelli, que definiu o filme como “uma espécie de epopeia sem afetação que mostrará a civilização colonial da maneira como a França a compreende. Nosso país produz de pobres homens seres pensantes, que compreendem e não gado para criar ou gado para a guerra” (9). Já durante a ocupação nazista da França, Pontcarral (Pontcarral, Colonel d’Empire, direção Jean Delannoy, 1942) apresenta um barão que não aceita a derrota para os ingleses em Waterloo e consegue provar sua coragem na Argélia. Durante a produção os alemães ainda estavam lá e o governo colaboracionista de Vichy censurou várias sequências (de barricadas) e diálogos (“atualmente, o lugar de homens honestos é na prisão”) (10). Também durante a ocupação Walter Kapps realiza Mahlia la Métisse (1943), finalmente ambientado na Indochina – as filmagens foram interrompidas devido ao início da invasão. Filha de um oficial francês e uma ananita, Mahlia foi criada na Indochina pelos Roussière. Seu filho, Henry, casaria alegremente com a mestiça, mas os pais se opõem. Ao mesmo tempo, Mahlia é cobiçada pelo rico e pilantra Chiang, já casado. Ela foge e Henri é morto ao protegê-la. Mahlia entra na missão católica “para criar as crianças no amor da França”.


Basicamente, pelo menos durante a década de 1930, a Indochina
nem  aparece  nas  telas.  Certamente não no sentido romantizado
daquelas  colônias   mais  próximas  da  França,  como  a  Argélia

Dois exemplos aleatórios posteriores à Segunda Guerra Mundial sugerem que as referências ao colonialismo francês foram se tornando esparsas e misturadas a fetiches sexuais. Em O Diário de um Padre (Journal d’un Curé de Campagne, 1951), do francês Robert Bresson, o religioso já está na estação de trem para ir embora da cidade quando é auxiliado por Olivier, que logo sugeriu que poderiam ser amigos. Sou da Legião (sabemos que se trata da Legião Estrangeira), informou Olivier, “sem essa roupa preta, [você] iria parecer com qualquer um de nós” (legionários). E Olivier continuou: “Admita, nosso mundo não é o deles” (os fiéis da igreja). Talvez apenas um oferecimento sincero a um padre de aspecto doente comparando-o a um soldado, ou, então, uma insinuação homossexual (na França, até meados dos anos 1980, homossexualidade era assunto do código penal). Em O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberte, 1974), filme da fase francesa do espanhol Luis Buñuel, na sequência do hotel durante a tempestade padre Gabriel pergunta para mais de um dos hospedes se já não se viram nas colônias (embora imaginemos que se refere às possessões francesas, o religioso chega a especificar o Congo Belga, inserindo mais um perpetrador de atrocidades, a Bélgica, no cardápio de brutalidades do colonialismo europeu). Nenhum dos hóspedes questionado o reconhece ou afirma haver estado nas colônias. Um deles, Jean Bermans, é sado-masoquista. Com sua tendência em segredo convida todos os hóspedes ao seu quarto para tomar vinho – na verdade, ele e sua companheira procuram parceiros. Bermans pergunta outro padre a qual ordem pertence seu grupo. “Carmelitas”, respondeu o religioso. “Ótimo”, Bermans retrucou, enquanto o padre olhou para ele por dois segundos sem compreender. 


Em  Diên Biên Phu, os franceses expõem sua derrota na Indochina
num filme bem caro.  Em O Amante, baseado no livro autobiográfico
de  Marguerite Duras,  uma  francesa  nascida na Indochina não está
à vontade em família ou na escola e arruma um amante mais velho

Durante a década de 1980, mais alguns filmes coloniais franceses foram às telas abordar o sentimento de perda, embora sempre na África, próximo da metrópole. Lucien Cordier, o delegado de polícia branco de alguma colônia francesa cheia de brancos racistas na África negra, não é respeitado por ninguém (nem mesmo por sua esposa) em A Lei de Quem Tem o Poder (Coup de Torchon, direção Bertrand Tavernier, 1981), certo dia ele se revolta. O delegado Guy, em Indochina, até poderia ter sido construído como um contraponto necessário para o orgulho francês ferido pela perda das colônias. Em Chocolat (direção Claire Denis, 1988), uma mulher francesa retorna à colônia (na atual República dos Camarões) repleta de europeus racistas e onde cresceu, em busca de memórias de sua infância. Na opinião de Phil Powrie, os dois filmes articulam nostalgia com uma crise da masculinidade presente na cultura francesa contemporânea. O primeiro lida com a perda do estilo de vida colonial. No segundo, a perda é dupla, a colônia e a infância. Apresentado pela cineasta Claire Denis como autobiográfico, a carga nostálgica de Chocolat aumenta bastante (11). O que nos faz lembrar Camille, com a França sendo escorraçada da Indochina, ela recebe um país livre, mas ao mesmo tempo perde as memórias de sua infância, marcada pelo estilo de vida e valores do colonizador/explorador.

Acabou a Festa (na Casa do Vizinho)!


Desde o século XVI, potências coloniais europeias justificavam
o colonialismo como uma extensão do Império Romano. A França
dizia  ir  além  ao  não  adotar  a  brutalidade  tirânica  do  invasor, 
mas  sim  fazendo  alianças  e  sendo  “convidada”  para  entrar

Depois da Grã-Bretanha, a França foi o país europeu com um império colonial fora do continente – na América do Sul, atualmente ainda existe a Guiana francesa, de onde a França dispara seus foguetes para o espaço; na América do Norte, existe um arquipélago na costa do Canadá, Saint Pierre et Miquelon; existem também algumas ilhas na costa africana do Oceano Índico. Embora uma boa parte do norte da África tenha sentido o peso das botas da famosa Legião Estrangeira uma das colônias mais famosas foi aquela que depois da independência se chamaria Argélia. O segundo filme do então famoso cineasta Jean-Luc Godard [que nasceu na França de pais suíços] foi censurado e acabou como fracasso de bilheteria. O tema de O Pequeno Soldado é justamente a situação pré-revolucionária na Argélia e a denúncia de utilização da tortura tanto pela França quanto pelos argelinos separatistas. 

“(...) Em 1952, [o pai de Godard] o convenceu a adotar a nacionalidade suíça para evitar ter de ir lutar na Indochina. Vale a pena enfatizar que para a França o final da Segunda Guerra Mundial não significou o final do conflito militar. Tanto na Indochina quanto na Argélia o exército francês irá se envolver numa tal escala que um período de serviço militar obrigatório de três anos foi aplicado. A assinatura de acordos de paz com a Frente Nacional de Libertação argelina em março de 1962 marcou a primeira vez que a França não se envolvia num grande conflito desde antes da Segunda Guerra, que havia terminado dezessete anos antes. Entretanto, cidadãos suíços também tinham obrigações militares consideráveis: um longo período inicial de treinamento era seguido por visitas anuais de serviço. Godard se valeu de uma disposição que permitia a cidadãos suíços vivendo no exterior a evitar este serviço militar, mas para aproveitar-se disso ele deveria evitar possuir domicílio legal na Suíça. De fato, enquanto realizava O Pequeno Soldado [(filmado na Suíça)], Godard entrou em conflito com as autoridades suíças em mais de uma ocasião” (12)


Entre 1945 e 1956, o que cobre a guerra de independência,
as  representações  cinematográficas  francesas da Indochina
e  de   seu   povo   se   limitavam  ao  noticiário  semanal,  que
sempre expressava a opinião e a propaganda do governo (13)

A colonização francesa da Indochina durou de 1887 a 1964, a descolonização originou Laos, Kampuchea (antigo Camboja) e Vietnã. A França começa a perder suas colônias depois da Segunda Guerra até década de 1960. Embora a guerra de independência da Argélia talvez seja mais famosa (já que havia sido incorporada ao próprio território francês), seria um erro subestimar o peso da perda da Indochina. Quando a Argélia deixou de ser colônia em 1962 – O Pequeno Soldado teria sido lançado em 1960, mas a censura o segurou até 1963! –, a Indochina já havia sido perdida desde 1954. Como a Coréia antes dela, foi dividida em dois pedaços para adequar-se aos interesses dos senhores da Guerra Fria (Estados Unidos e União Soviética), um comunista e outro capitalista – logo os norte-americanos iriam chegar... Talvez para tentar dissimular a constatação de que o colonialismo não era outra coisa senão invasão de terras alheias e rapinagem de seus recursos naturais e humanos, portugueses, espanhóis, holandeses ingleses e franceses, cada um à sua maneira, construíram ao longo dos séculos a justificativa delirante de que sua expansão colonial se espelhava naquela do Império Romano. Mas os franceses se consideravam um passo além do romano, que era baseado na conquista tirânica de povos estrangeiros – Asterix, personagem de quadrinhos mais popular da França, é justamente o gaulês que resiste heroicamente a essa brutalidade. Os franceses consideravam a sua abordagem melhor, implantando “alianças” com os nativos e recebendo “consentimento” para se estabelecer em suas terras – essa prática foi adotada desde as conquistas do século XVI (14). Com suas sangrentas e brevíssimas conquistas italianas na África, Mussolini também acreditava estar ressuscitando o Império Romano.

Uns e Outros


 Camille, Éliane e Jean-Baptiste são todos  personagens ambíguos,  
apesar de serem referenciados individualmente.  Já  o  colonizado, é
despersonalizado e neutralizado pelo pronome pessoal na 3ª pessoa
do plural: “eles”. É assim que Camille se refere a seu próprio povo

Embora Camille seja ananita e uma dos personagens principais, nunca é claramente identificada como sendo diferente dos europeus. Se parece, fala e se veste como um deles (embora sua mãe adotiva sempre use roupas indochinesas típicas). Rollet observa que Camille se refere a “eles” quando fala de seus compatriotas ananitas, o que ilustra tanto sua identificação enquanto sujeito colonizador, quanto seu distanciamento do “outro colonizado”. Para Rollet, Camille também incorpora a visão de Memmi de que outro sinal da despersonalização do colonizado é aquilo que se chama de marca do plural. O colonizado nunca é caracterizado de forma individual, ele só tem direito de afundar num coletivo anônimo. De um ponto de vista cultural e religioso, Camille também se identifica com o europeu, mesmo quando se junta aos ananitas. O rompimento com Éliane tem mais a ver com ciúme sexual do que um conflito ideológico. Ela nunca questiona a mãe, mesmo quando esta diz para a filha que “sua Indochina está morta”. Quando Camille descobre o lado “mal” do colonialismo, ela justifica a mãe tornando-se comunista, e justificando que “é a única maneira de sobreviver”. Rollet evoca os escritos de Homi Bhabha para sugerir que Camille escapa à categorização tornando-se tanto o eu e o outro quanto uma espécie de eu colonizado ou sujeito. Para Rollet Éliane indica esse processo quando diz que “Camille está com seu povo”, e que “agora ela tem a Indochina dentro de si”. Contudo nada é simples, pois, novamente de acordo com Rollet, o fato de que quando Camille se transforma no Outro (seja através das roupas, linguagem ou estilo de vida), torna-se também ligada a Jean-Baptiste, último representante do mundo dos brancos, borra ainda mais a difícil distinção entre o eu e o outro (15).


Jean-Baptiste  é  apresentado  como um herói  moral  e  soldado com
princípios. Entretanto, só afrontou seus superiores por amar Camille

Em menor grau a ambiguidade entre Eu e Outro é encontrada em Jean-Baptiste e Éliane. Rollet explica que ele se encaixa na descrição de Memmi como “o colonizador que recusa”, um traidor – especialmente em se tratando de um instrumento do exército. Inicialmente apresentado como jovem oficial disciplinado e cumpridor de ordens sejam quais forem, Baptiste se diferencia dos outros colonizadores por não respeitar as regras não escritas do colonialismo. Como quando chama Éliane de ave de rapina, que trata seus funcionários trata suas árvores, comprando-os e sangrando-os. Mas ele não irá lutar do lado do colonizado. Para Rollet, ele é bastante individualista, ofendido com a ideia de que uma mulher possa influenciar seu destino, identificando-se com o colonizado nesse momento. Suas ações não demonstram um desejo de desertar do exército e/ou se juntar ao colonizado/oprimido. Sua posição é de princípio, não de ação. Sua razão para desertar/trair o exército não é motivada por questões políticas, mas motivos pessoais. Quando foge com Camille, recebe ajuda de Tanh, já membro do Partido Comunista clandestino, e também não demonstra qualquer interesse em sua luta. Rollet sugere que a “neutralidade” de Baptiste está aparente no papel em que atua na peça do grupo de teatro ananita onde se esconde com Camille, um personagem que não representa nada ou ninguém. Jean-Baptiste aceita o tráfico de escravos e/ou o assassinato de uma criança ananita por seu superior. Reage apenas para salvar Camille, a quem ama, mas que acaba de matar um militar ocidental. Rollet insiste que, apesar de suas ambiguidades, Jean-Baptiste é apresentado como um herói “moral” e se encaixa no estereótipo do “soldado com princípios” - em oposição direta ao amoral/imoral Guy, o chefe de polícia francês.


Éliane, que não teve filhos, se apresenta como mãe de todo mundo, 
de  Camille,   do  filho  dela,  de seus funcionários ananitas.  O  projeto
da colonização,   a   “mãe colonial”,    não   apenas   pretende  proteger
os  nativos   dos   males  do  mundo,   mas   também  de  si  mesmos

A escolha de Catherine Deneuve para o papel de Éliane não é casual. Além de ser uma embaixadora quase oficial da França na moda, se pode também sugerir que incorpore a França, já que desde 1985 sua imagem (depois de Brigitte Bardot) é utilizada em prédios públicos como modelo para Marianne, símbolo da república francesa. A história contada em Indochina é a de Éliane, rica proprietária de terras que nasceu lá e vive com seu pai no meio da plantação de seringueiras, uma das maiores propriedades do gênero na Indochina - que herdou com a morte dos pais de Camille. Suas relações compreendem tanto a classe alta local quanto europeus influentes, como o delegado de polícia. Éliane representa o que Rollet chama de “lado aceitável” do colonialismo, humanitário e paternalista, típico do papel da atriz Meryl Streep em Entre Dois Amores (Out of Africa, direção Sydney Pollack, 1985), desta vez focando o colonialismo inglês. Contudo, para Rollet, por suas relações com os autóctones Éliane não se encaixa perfeitamente nas categorias dos “colonizadores que aceitam” ou na dos que recusam – ao mesmo tempo, não rejeita o papel de colonizadora e não reage quando seu time de remadores locais (que ganhou dos militares a corrida de barcos) recebe comentários racistas. Ao contrário de Yvette, Éliane é solteira, mãe adotiva de Camille (e do filho dela) e tem um emprego (de homem, como disse Jean-Baptiste), não se vê como francesa, prefere manga (ao invés da maça europeia) e chama a mãe de Tanh de tia. Aliás, afirma Rollet, Éliane parece a mãe de seus funcionários, Baptiste é bem mais jovem, ela age com seu pai como uma mãe tolerante e confessa que nunca desejou receber o delegado Guy em seu útero. Éliane ilustra o comentário de Frantz Fanon sobre a relação com a família, fundamental para o colonialismo:

“No plano inconsciente, o colonialismo... não procura ser considerado pelo nativo como uma mãe gentil que protege sua criança de um ambiente hostil, mas como uma mãe que incessantemente restringe sua cria fundamentalmente perversa de... liberar seus instintos malignos. A mãe colonial protege sua criança de si mesma, de seu ego, e de sua fisiologia, sua biologia e sua própria infelicidade, que é sua própria essência” (16)


Leia também:


Notas:

1. ROLLET, Brigitte. Identity and Alterity in Indochina (Wargnier, 1992). In: POWRIE, Phil (Ed.). French Cinema in the 1990’s. Continuity and Difference. New York: Oxford University Press Inc., 1999. P. 37.
2. Idem, p. 38.
3. Ibidem, pp. 37-40.
4. Ibidem, p. 39.
5. DURAS, Marguerite; PORTE, Michele. Les Lieux de Marguerite Duras. Paris: Les Éditions de Minuit, 1977/2012. Pp. 56, 59-61.
6. DOUIN, Jean-Luc. Dictionnaire de la Censure au Cinéma. Images Interdites. Paris: Quadrige/PUF, 2001. Pp. 205-6.
7. CHIRAT, Raymond. Le Cinéma Français des Années 30. Renens: 5 Continents; Paris: Hatier, 1983. Pp. 45-6, 58-60.
8. Idem, p. 60.
9. Ibidem, p. 60.
10. ORY, Pascal. Le Cinéma Français sous l’Occupation, entre Enfer et Paradis. In: MANNONI, Laurent; SALMON, Stéphanie (dir.). Les Enfants du Paradis. Marcel Carné, Jacques Prévert. Éditions Xavier Barral/La Cinémathèque Française/Fundation Jérôme Seydoux-Pathé, 2012. P. 24.
11. POWRIE, Phil. French Cinema in the 1980’s. Nostalgia and the Crisis of Masculinity. New York: Oxford University Press, 1997. Pp. vii, 15.
12. MacCABE, Colin. Godard. A Portrait of the Artist at 70. London: Bloomsbury Publishing, 2004. P. 83.
13. ROLLET, B. Op. Cit., p. 37.
14. SEED, Patricia. Cerimônias de Posse na Conquista Europeia do Novo Mundo (1492-1640).
Tradução Lenita R. Esteves. São Paulo: UNESP, 1997. P. 251-3.
15. ROLLET, B. Op. Cit., pp. 41-5.
16. Idem, p. 45

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